Diário da tese (2): a técnica da qualificação

jittsi

A defesa do projeto de tese no processo que se chama “qualificação” na academia ocorreu semana passada, e foi tudo bem. A banca trouxe excelentes contribuições para melhorar (e reformular) algumas questões do projeto. Deixou mais claro alguns caminhos em vez de outros. Promoveu debate sobre questões que até então pouco tinham sido conversadas cara a cara. E com isso, trouxe um pouco de segurança para se tocar os próximos passos. Dito isso, vamos aos detalhes.

Cheguei cerca de 1h antes da banca para testar os equipamentos, já que não ia usar os que se costuma usar naquela sala. Explico: a mim não faz sentido estudar objetos técnicos e a mediação e fazer uma chamada voz sobre IP em um software “caixa-preta” que seu código só é conhecido pela sua empresa, como é o caso do Skype e da empresa que o desenvolve, a Microsoft. Se boa parte dos intuitos da pesquisa com que, por exemplo, a Teoria Ator-Rede (TAR) trabalha, é o de abrir as caixas pretas e ver o social em formação, em fluxo (e rede), então a escolha dos objetos a fazer parte da videoconferência também deve buscar essa abertura. Pelo menos é o que acredito, e conta aí também alguns anos de defesa e uso do software livre, movimento que justamente defende a abertura dos códigos como questão primordial de liberdade, segurança, acesso ao conhecimento e, principalmente, autonomia. Fiz um artigo de uma disciplina do doutorado, inclusive, propondo essa aproximação da TAR com a filosofia do software livre, que ainda vou revisar e publicar em algum lugar – ou de repente trago aqui mesmo do jeito que está.

As opções que tinha levantado era o Mconf, programa bem completo de videoconferência produzido por um grupo da própria UFRGS, e o Meet.jit.si, muito utilizado pelo pessoal do software livre. Já havia testado ambos e gostado mais do segundo, embora o primeiro seja interessante também e um ambiente bastante completo para grupo de estudos e videoaulas. Na sala destinada a banca, ligo o computador e detecto uma primeira questão: assim como todos os outros que já tive acesso na UFRGS, o computador tem como sistema operacional Windows, da mesma Microsoft. Meu lado ativista/pesquisador apita: por que uma universidade pública usa em seus computadores um sistema operacional que custa alguns milhares de reais por ano em licenças tendo a opção de, com esse mesmo dinheiro de licenças, bancar um grupo de desenvolvimento e customização de alguma distribuição livre baseada em GNU/Linux específica pra universidade?

Encontro duas razões principais: o fato das pessoas estarem “acostumadas” a usar mais o Windows, já que ele foi colocado na cotidiano de muita gente desde muito cedo; e, o lobby político e financeiro da Microsoft, que explica a primeira também. Ambas razões, a meu ver, deveriam ser questionadas por universidades públicas que sempre dizem ter como princípios o livre acesso ao conhecimento: quão livre é esse conhecimento se não temos acesso aos códigos que são construídos os softwares de um computador que usamos? Não seriam estes softwares também conhecimento que devemos ter livre acesso? Ou o entendimento geral é de que os computadores e seus códigos seriam apenas “ferramentas”, meios que não interferem nos fins a que são destinados? Sob esta perspectiva política (e econômica) é que pode se compreender o uso do Windows na universidade: “vamos pagar a Microsoft para fornecer um produto fechado e não pensar mais nisso” é melhor que “que tal desenvolvermos nossa própria distribuição livre customizada e assim abrir as ‘caixas-pretas’ dos nossos computadores e sabermos minimamente o que tem ali?”. Como se percebe, este ponto de vista da neutralidade da técnica, criticada pelos pesquisadores da TAR e por tantos outros filósofos (Heidegger entre eles) e pensadores, ainda predomina (e muito!) no nosso senso comum.

Com Windows a contragosto, surge o segundo problema: não há o navegador Chrome instalado, de modo que tenho de baixá-lo e instalar, já que o “jitsi”, por enquanto, só funciona em Chrome (e sua variante livre, o Chromium). Vou falar com o pessoal da “técnica” – assim são chamados o pessoal do “Setor de Informática” – pra ver a possibilidade de baixar o Chrome, já que tinha ouvido falar que certos computadores da universidade não tem permissão pra instalar softwares. Eles me dizem que é possível sim, mas que no próximo início do computador o Chrome vai estar apagado; afirmam que esse é o funcionamento de praxe para evitar a instalação de programas desnecessários pelos alunos; questão de segurança. Digo do meu desejo de usar um outro sistema de videoconferência para a banca: eles respondem que possivelmente não vai funcionar, porque o CPD (Centro de Processamento de Dados) pode barrar os pacotes de dados em outros softwares que não os testados na máquina. Precisaria ter avisado com antecedência para eles testarem, é o que me falam.

Não quis mais discutir e voltei pra sala da qualificação. Instalamos a webcam, testamos o áudio. Entrei no Skype e loguei com minha conta – que nem lembrava mais, faz pelo menos uns três anos que não usava ele. Mas também baixei o Chorme e fiz uns testes com o Jitsi: funcionou bem, ouvi claramente o professor da banca (Fábio Malini) e ele me ouvia. A imagem oscilava, mas mais por conta da conexão (cabeada, rede da universidade) do que por outro motivo. Testei a opção do jitsi em compartilhar a tela com o outro participante, de modo a poder mostrar a tela da apresentação da quali, mas deu “tilt”: travou o som de retorno do Malini e ele não nos ouvia mais. Como já havia passados 5 minutos do horário de início, desativei essa função e regulei a webcam para mostrar a tela do projetor que estava sendo passada a apresentação. Gambiarra que deu certo e assim começamos a banca, com minha apresentação, seguido da fala de Malini, a de Alex Primo e minhas respostas. Como já disse na abertura do texto, foi uma ótima banca (pelo menos pra mim) e trouxe muitas contribuições pro andamento da pesquisa.

Na semana que vem falo mais desses encaminhamentos; aqui está o PDF da apresentação utilizada.

Diário da tese (1): do início até a qualificação

imagem post blog

Entrei no doutorado em comunicação e informação no PPGCOM da UFRGS em março de 2013. De lá até aqui, setembro de 2015, muita coisa aconteceu nesse processo: disciplinas cursadas na UFRGS e na PUCRS (existe um convênio entre os programas de pós-graduação em comunicação da região – Unisinos e UFSM, além dos já citados – que possibilita esse intercâmbio para cursar disciplinas, de forma gratuita e a depender da disponibilidade de vagas); estágios-docências realizados (no doutorado, dois são obrigatórios para quem é bolsista CAPES, o que é meu caso; fiz ambos em webjornalismo, no curso de jornalismo); orientações de trabalhos finais da graduação (oficialmente coorientação, porque só professor da universidade pode “assinar” a orientação do trabalho, segundo normas da UFRGS de 2014 pra cá, o que é uma questão complexa a se discutir em outro momento); entre outras coisas diversas que não vale citar aqui.

Nesse período, é natural – eu diria até normal – que o projeto inicial do doutorado se altere. Foi o meu caso; do nome do projeto com que entrei no doutorado, “Cultura hacker no jornalismo: métodos e ética do it yourslelf nas práticas jornalísticas contemporâneas do ciberespaço“, só a palavra jornalismo permanece hoje. Leituras, vivências e problemáticas levantadas nesses dois anos e meio foram os fatores responsáveis por essas mudanças, muitas delas trazidas pelas disciplinas cursadas, outras tantas por experiências fora da academia – no meu caso, a pesquisa estava (e ainda está) umbilicalmente ligada com minha prática fora da universidade. Nunca consegui pesquisar assuntos que não permeiem minha ação prática, profissional ou não, e suspeito que fazer esta separação seja um dos motivos pelo qual a universidade continua a construir muros de separação com a comunidade (a “realidade”), com raras exceções em alguns cursos e oficinas e nos projetos chamados de “extensão”. Projetos que, no caso de programas de pós-graduação em comunicação, não são comuns; no programa onde estou, só sei da existência de um destes projetos, e não me parece que seja muito diferente nos outros 44 programas existentes na área no Brasil, segundo a CAPES. Culpa do sistema produtivista, que não valoriza muito no Lattes esse tipo de ação, e também de todos que cá estamos, que às vezes não estamos preocupados (ou não queremos, ou – mais raro – não conseguimos) em trazer algum retorno, depois de anos de estudo, para determinada comunidade.

Mas voltando ao projeto: embora muita coisa tenha se modificado, outras permanecem. O projeto atual tem o nome de “A mediação no jornalismo produzido por não-jornalistas: um estudo das agências humanas e não-humanas na Mídia Ninja“. Da bagagem teórica e prática sobre cultura hacker e jornalismo que pesquisei nos últimos,  algumas questões permanecem, sobretudo da relação da ética hacker com a ideia de transparência presente em alguns coletivos de comunicação e o espírito “faça você mesmo” sem pedir autorização nem a “benção” de alguém. Outras mudanças são substanciais, como a forte presença da teoria ator-rede no trabalho (“agências humanas e não-humanas” vem daí), popularizada (e questionada) pelo antropólogo Bruno Latour, que tomei conhecimento em uma das disciplinas cursadas no PPGCOM, “Artefatos da Cultura Digital”, com a professora Suely Fragoso, e foi uma daquelas experiências conceituais que “viram a chave” de diversos entendimentos, tanto pra pesquisa específica como pra vida.

Este post inaugural do diário da tese tem um motivo especial de sair hoje: amanhã, dia 1/10, às 15h no auditório 2 do prédio da Fabico (faculdade de biblioteconomia e comunicação onde se situa o PPGCOM) vou a qualificação com este projeto. A banca é formada por Virgínia Fonseca, minha orientadora, e Alex Primo (UFRGS) e Fábio Malini (UFES). A qualificação é como uma pré-banca, onde o projeto de tese é avaliado e criticado, com o objetivo de afiná-lo até a defesa final, no meu caso a ser realizada entre dezembro de 2016 e março de 2017. Neste um ano e alguns meses até lá, o objetivo aqui é compartilhar referências, problemas, angústias e informações desse trabalho extremamente solitário que é a feitura de uma tese – por mais que haja orientador, colegas, amigos e grupos de pesquisa para se discutir, é sabido que a feitura de uma tese é um processo interno profundo, de cada um e seu(s) computador(res). Que seja, então, um processo solitário compartilhado.

P.s: Aproveitei a ocasião também para compilar alguns materiais espalhados, publicações e utilizados em aulas, palestras e oficinas, neste mesmo site, assim como informações sobre projetos que participo/participei. A ideia é ir agregando novos na medida em que forem sendo produzidos.

(a foto que abre o post é da Sheila Uberti)