Diário da tese (13): junho de 2013 a agosto de 2016

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Na semana final de julgamento do Impeachment de Dilma Roussef, no Senado brasileiro, ficou difícil trabalhar na feitura da tese por aqui. Não é desculpa pra procrastinação (tá, pode ser também), mas é inevitável sentir uma certa tristeza hoje, 29 de agosto, dia em que Dilma foi ao Senado fazer sua defesa, com um discurso corajoso (mas tardio), respondendo e enfrentando senadores com franqueza. Nos últimos dias, tenho analisado postagens da Mídia Ninja e de alguns de seus integrantes em junho de 2013 e lá havia uma esperança de melhora, de resolução de desigualdades históricas no Brasil, que hoje, 3 anos e 2 meses depois, não se concretizaram e nem parece que vão ser tão cedo. Nem o mais pessimista dos manifestantes que saiu às ruas de várias cidades no país em 6, 11, 13, 17 de junho de 2013 imaginaria que hoje estaríamos em um processo claro de perda dos poucos ganhos obtidos da redução da desigualdade e do início de um período de fortalecimento de posições conservadoras e contrárias aos direitos humanos. Ou imaginaria?

Não sei dizer. Minha tese não tem por foco discutir junho de 2013, mas tem esse momento histórico como pano de fundo, e talvez da análise destes dados surjam algumas respostas. O que podemos dizer sobre todo esse processo, que iniciou em 2013 (ou antes, como esse texto argumenta) e que, depois de umas eleições apertadas vai resultar no processo de impeachment de Dilma, é: sabemos que é/foi golpe mesmo (seja político e/ou judiciário, midiático), e nada conseguimos fazer pra evitar – muito por culpa do próprio PT, em boa parcela responsável pela situação chegar a esse ponto em que “os fins justificam os meios”. A “democracia” não parece ser um valor relevante para boa parte d@s brasileir@s, e teremos de lidar de frente com as consequências atuais e futuras deste fato, talvez concentrando energia em buscar “saídas” no micro, na autonomia, no local (é a minha opção, pelo menos). Mas as consequências do que está acontecendo podem ecoar em atrasos de anos, décadas, e que já podem ser sentidos aqui e ali, nas ruas, nas ações autoritárias/retrógradas desse atual governo, na (des) esperança das pessoas, sobretudo quando comparado a otimismo ativo de junho de 2013, onde a energia de transformação pra algo melhor era latente e expressa em cada um dos milhares de manifestantes que foram às ruas – leia “A revolução será pós-televisionada”, escrito por Elizabeth Lorenzotti em 10 de julho de 2013 para o Observatório da Imprensa, à luz dos acontecimentos que ocorreram de lá pra cá e veja como muita coisa mudou. Olhar o que (tod@s) erramos parece ser o caminho doloroso a se percorrer pra quem sabe errar melhor duma outra vez.

P.s: Vou disponibilizar os dados que estou analisando da Ninja e de textos desse período na próxima semana.

Fotos: Mídia Ninja, 17 de junho de 2013 e 29 de agosto de 2016.

Diário da tese (12): Ciência Aberta

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Na busca dos últimos meses em softwares e sites que pudessem facilitar o processo de compartilhar a tese, acabei por (re) descobrir a rede Ciência Aberta. Já faço parte desde o ano passado da lista de emails, acompanho algumas discussões, mas não tinha me dado conta de algumas implicações do que a Ciência Aberta significa no processo de compartilhamento do processo de pesquisa. Então esse post é, mais do que uma reflexão, um convite a alguns experimentos.

O que é Ciência Aberta?
É uma comunidade de pesquisadores brasileiros que compartilham, capacitam e refletem sobre práticas acadêmicas abertas em suas variadas manifestações, também defendendo infra-estrutura e políticas adequadas para esse fim. Reconhecem como tendências abertas na pesquisa:

Publicações – acesso aberto
Dados – padrões e repositórios abertos
Instrumentos – designs, hardware, software e facilities compartilhados
Materiais – bancos colaborativos de espécimes, tecidos, amostras, moléculas, objetos
Processos – cadernos abertos, wikipesquisas e colaboração massiva
Ciência cidadã – da contribuição de recursos a cidadãos pesquisadores
Aprendizagem – educação aberta, recursos educacionais abertos
Inovação – incentivos pró-abundância, modelos de negócio abertos
Avaliação – revisão por pares aberta, métricas alternativas, dados sobre ciência
Financiamento – mandatos, crowdfunding, planejamento aberto

O grupo de Ciência Aberta brasileiro faz atividades desde 2013, de dia dos dados abertos a encontros de acadêmicos pelo conhecimento livre, e ano passado realizou um encontro em São Paulo, na USP e no Garoa hacker Clube, também aí buscando uma aproximação (necessária, fundamental) entre redes produtoras de conhecimento para além da exclusividade da academia – e se você acha que somente se produz conhecimento na universidade, volte um post atrás desse diário/semanário.

O grupo, que também é um blog e uma lista de e-mails, produziu um livro no ano passado, “Ciência Aberta, questões abertas”, organizado por Sarita Albagli e Maria Lucia Maciel (IBICT – Unirio) e Alexanbdre Hannud Abdo, doutor em física pela USP, que ajudou a fundar o Garoa e a Open Knowledge Foundation Brasil, além de administrar a Wikiversidade. É de Abdo o último artigo do livro, “Direções para uma academia contemporânea e aberta”, de onde saiu esse trecho, que desenha um cenário que, por uma outra perspectiva, dialoga com o que falei no último post, de que necessitamos buscar outras formas de fazer na academia que captam as texturas confusas do mundo para além do que consideramos hoje como “ciência e conhecimento”.

“Universidades, institutos e agências de pesquisa, particularmente brasileiros, vivem há pelo menos uma década em estado de contradição. Por um lado, é inadiável um movimento por maior compartilhamento e colaboração do conhecimento mantido e produzido, assim como dos recursos disponíveis, aplicando-se na academia as inovações proporcionadas pela tecnologia e cultura da colaboração e compartilhamento, que já transformaram e dinamizaram a sociedade e a economia (benkler, 2006). Até nos aspectos administrativos há necessidade urgente de projetar luz sobre as contas e contratos dessas instituições. Por outro lado, uma atitude corporativa, de muros e de “donos do conhecimento” incide na contramão dessas inovações. Desconectada da contemporaneidade e mantida pelo hábito e para a sustentação, justificada, do modo de vida de uma parcela da academia, essa atitude manifesta-se em diversos aspectos da vida acadêmica, aparecendo também, por vezes, entrincheirada em círculos viciosos de privilégios e interesses anacrônicos. Estes precisam ser superados para que, aos poucos, a academia possa dar espaço a novas experimentações nos modos de produção acadêmica.”

O grupo também mantém um excelente Manual para Ciência Aberta, com dicas de ferramentas, softwares, sites e outras informações pra quem quer abrir sua pesquisa. Dele pesquei três ferramentas que estou vendo a possibilidade de abrir esta pesquisa para além deste site:

Open Science Framework: é um site para administrar de projetos, compartilhar e organizar arquivos. Open source e sem fins lucrativos, é administrado pelo Center for Open Science. Ainda não testei, mas tem milhares de pessoas por aí usando.

GitHub/GitLab: GitHub é a rede mais utilizada por desenvolvedores para compartilhar códigos de projeto de sites, softwares e aplicativos – mas serve pra muito mais coisa, inclusive postar texto. O sistema de discussão é o forte, focado em caça a bugs (issues), especialmente na área do software, mas requer um pouco mais de expertise técnica.

Wikiversidade: É o site wiki voltado a educação administrado pela Wikimedia Foundation. Funciona como a Wikipedia, fácil de editar e de ver todas as alterações realizadas. Ganha pontos pela facilidade de uso e ser um sistema mais familiar a todos que usam a rede.

Zenodo: ferramenta mais pra pós-pesquisa, arquiva dados de forma bastante interessante – e pros fãs do Lattes, o que se carrega lá ganha até um “DOI”, um padrão para identificação de documentos em redes de computadores.

Foto: OKFN Brasil.

P.s: Gracias ao Abdo pelas indicações das ferramentas/softwares.

Diário da tese (11): Depois do método

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Em 1974, o austríaco Paul Feyerabend estava cansado: era professor convidado na Universidade de Sussex, em Brighton, na Inglaterra, trabalhando 12 horas por semana e não dava mais conta de ensinar. Tendo lutado no Exército Nazista alemão da Segunda Guerra Mundial (atingido por uma bala, viveria desde então de muletas), estudado com Karl Popper em Londres e estado professor de filosofia na Universidade de Berkeley, na Califórnia, Feyerabend havia trabalhado nos últimos anos em um texto junto de seu amigo Imre Lakatos, matemático e professor na London School of Economics, sobre “anarquismo metodológico”. O livro consistiria de duas partes: a primeira, a cargo do austríaco, traria uma crítica a posição racionalista na ciência: Lakatos, por sua vez, reformularia essa posição para defendê-la e rebater os argumentos de Feyerabend. Juntas, as duas partes deviam retratar os longos debates dos dois em torno desse tema — que tiveram início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefônicas, artigos, e só tiveram fim com a morte repentina de Lakatos, em 2 de fevereiro de 1974.

Como homenagem ao colega, Paul Feyerabend resolveu publicar o livro assim mesmo, só com uma parte, e assim nasceu Contra o Método (1975), um manifesto contra o método científico racionalista que recorre a psicologia, sociologia e história da ciência para se perguntar: será que é desejável apoiarmos uma tradição que se mantém una e intacta, através de regras restritas, e ainda concedê-la direitos excusivos sobre a manipulação do conhecimento sobre as demais? A resposta dele é taxativa: “um firme e vibrante NÃO” (p.24).

30 anos depois, John Law, um dos pesquisadores mais diretamente ligado à TAR, escreve um livro inteiro que, embora não aborde diretamente as referências do austríaco, tem um mesmo objetivo: discutir o método científico da tradição Euro-Americana. O argumento central de After Method: mess in social science research traz a ideia de que os modos de inquirir acadêmicos não captam as texturas confusas do mundo tal como elas se apresentam. Partes do mundo são capturados nas etnografias, histórias e estatísticas, mas outras partes não. Ele então se pergunta: “If much of the world is vague, diffuse or unspecific, slippery, emotional, ephemeral, elusive or indistinct, changes like a kaleidoscope, or doesn’t really have much of a pattern at all, then where does this leave social science? How might we catch some of the realities we are currently missing? Can we know them well? Should we know them? Is ‘knowing’ the metaphor that we need? And if it isn’t, then how might we relate to them?” (p.2)

Law não tem uma única resposta para estas questões, mas uma certeza: se queremos pensar sobre a bagunça (mess) da realidade, então nós vamos ter de nos ensinar a pensar, praticar, relatar e conhecer de novas maneiras, não apenas do jeito que nos ensinaram nas aulas de metodologia. After Method é, então, um livro que sustenta um modo de pensar sobre o método que é mais amplo, solto e devagar, que afirma que os métodos, suas regras e práticas metodológicas não apenas descrevem a realidade como também ajudam a produzir a realidade que estão compreendendo (p.5). O método – como a tecnologia, os objetos – jamais é inocente ou somente técnico, e, diferente do que a tradição metafísica racionalista Euro-Americana de estudos científicos ensina, ele não é apenas um meio para o fim de conhecer melhor algo.

Para descrever sua proposta, Law traz diversos estudos e situações na história da ciência e tecnologia. No capítulo dois, ele vai ao livro de Bruno Latour e Steve Woolgar, A vida no Laboratório: a produção dos fatos científicos, publicado em 1979, e ver, “sob os ombros dos etnógrafos da ciência”, como cientistas e outros produzem conhecimento na prática. Com Latour e Woolgar, Law introduz sua não-proposta de método a partir da ideia de assemblage, oriunda da filosofia de Giles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs (1980): “a process of bundling, of assembling, or better of recursive self-assembling in which the elements put together are not fixed in shape, do not belong to a larger pre-given list but are constructed at least in part as they are entangled together” (LAW, 2004, p.42). A ideia de assemblage recusa fórmulas fixas que definam a priori o que é bom ou ruim como método e determina que este ocorra como um processo contínuo de elaborar e performar (enact) os limites necessários entre presença, ausência e alteridade.

O método assemblage também pode ser entendido como ressonância que cria e detecta periodicidades e padrões no fluxo das coisas (p.143). Mas que padrões e periodicidades ele estabelece e quais nega? Com a perspectiva de não trazer respostas generalistas e nem partir de relações assimétricas em sua busca, o método assemblage pode percorrer os desvios e a indecisão das múltiplas realidades e delas captar questões que mantém estabilidades temporárias que podem ajudar a performar outras estabilizações temporárias, e assim indefinidamente. Se, como diz Law, a metafísica Euro-Americana se compromete com a estabilidade e a precisão de suas investigações, mesmo que ao custo de posições tomadas a priori do observador e da aparente universalidade de suas afirmações, esta metafísica alternativa proposta por Law em After Method quer incluir a inconstância de modos alegóricos, ambíguos, pouco tácitos, na hora de construir métodos heterogêneos que performem uma dada realidade mais do que a tentem representar.

Law encerra o livro sugerindo que as afirmações metafísicas que o método científico tradicional Euro-Americano propõe devem ser erodidas. Mas de que forma prática fazer isso? Quais os métodos alternativos que são lentos, incertos, que dediquem atenção ao processo e consigam capturar as múltiplas realidades performadas de maneira mais heterogênea? A resposta, é claro, é que não há uma única resposta – nem deve haver (p.151). Mas a capacidade de colocar as questões é tão importante como quaisquer respostas particulares que possam ser obtidas – no que Feyerabend, com sua radical e ainda atual provocação ao método trinta anos antes, talvez concordaria.

Baixe:

LAW, John. After Method: mess in social science research. New York: Routledge, 2004.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Tradução de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1977.

P.s1: After Law é um caminho sem volta de leitura, e como tal estará na tese que, nesse momento, anda lenta no segundo capítulo. A imagem de abertura é da introdução do livro, p.1.
Ps2: Agradeço a Fundação Ecarta e ao Léo Felipe pela aleatoriedade de cruzar meu caminho, na semana passada, com o catálogo da exposição “Um firme e Vibrante NÃO“, de 2015, onde Leo cita Feyerabend – e por conta disso é que surgiu a ideia de ligar Law e Feyerabend.