Quando me formei em jornalismo pela UFSM em 2007, um dos presentes que ganhei foi um livro chamado “A Nova Visão, de Blake aos beats”, de Michael McClure. Na época, o livro me despertou mais atenção pelo beats da capa do que por qualquer outra coisa: havia sido durante a faculdade leitor assíduo dos romances de Kerouac, e conhecia alguma coisa de Ginsberg, Burroughs, Gregory Corso, Neal Cassady (o Dean Moriarty de On the Road) e do autor do livro, Michael McClure. O amigo que me deu o livro sabia desse meu interesse nos beats, e pensando nisso me presentou com “A Nova Visão”, uma coletânea de ensaios e poemas traduzidos para o português por Daniel Bueno, Lúcia Leite e Sérgio Cohn, também editor do livro, na Azougue.
McClure não me bateu de imediato: sua busca por uma poesia mamífera (e não só humana), suas sacadas ecológicas, biológicas e sua descrição de animais, habitats, o pendor para a história e a antropologia, as narrativas simbólicas do lobo não foram compreendidos por mim naquele tempo. Não eram os beats que havia conhecido na leitura que havia feito de Kerouac – Os Vagabundos Iluminados, Tristessa, Cidade Pequena, Cidade Grande e sobretudo On the Road – de estrada, liberdades, caronas, parceria e viagens de todos os tipos, embora McClure estivesse nessas viagens também e na clássica leitura na Six Gallery em 1955, marco inicial do que se popularizou como “geração beat”. Durante alguns anos, enquanto folheava de maneira muito esporádica “A Nova Visão”, visitava outro livro da mesma coleção da Azougue em uma livraria na cidade onde morava, buscando, hoje sei que secretamente, cotejar McClure com este outro livro e ver porque aqueles poemas e ensaios sobre montanhas, fogueiras e animais eram temas de escritores “beats”. Frequentei a livraria por anos e folheava sempre o mesmo exemplar, que já estava um tanto gasto e nem novo mais parecia, até que em 2010 tomei a coragem de comprá-lo, mesmo que fosse usado (talvez só por mim).
O livro se chamava “Re-Habitar“, ensaios e poemas, de Gary Snyder, outro escritor que se tornou famoso com a geração beat, que participou da leitura de 1955, das viagens (inclusive como personagem dos livros de Kerouac, em especial o “Japhy Ryder de “Vagabundos Iluminados”) e também escrevia de animais, ecologia, povos ameríndios e fogueiras. Em 2010, “Re-Habitar” me bateu melhor que “A Nova Visão”, muito por conta de seus ensaios, que se relacionavam com uma na época crescente visão que tinha de que estamos fodidos, enquanto humanos, à caminho da extinção de nosso planeta. Durante os anos seguintes, enquanto uma certa visão ecológica se amadurecia em mim, mantive o livro por perto em diferentes cidades onde morei, como uma espécie de farol ancestral que me servia de iluminação para saber para onde estamos indo – e, principalmente, de onde viemos e quem são aqueles que estavam aqui quando nem nos conhecíamos enquanto pessoas, estados, nações. Fui atrás de algumas entrevistas com o autor, e passei a admirá-lo ainda mais quando ouvi o que falava, como falava e desde que lugar falava sobre temas como ecologia, zen budismo, integridade, ética, relação com os povos ameríndios ancestrais – essa entrevista feito pelo escritor e poeta brasileiro Rodrigo Garcia Lopes, em 2009, é especialmente interessante. Descobri que vivia (e ainda vive, aos 87 anos) em um rancho que ele mesmo construiu nas montanhas de Sierra Nevada, na Califórnia, que havia passado 10 anos vivendo no Japão como um monge zen-budista, que havia ganho o prêmio Pullitzer por “Turtle Island” (1974), que é professor émerito da Universidade da California – Davis. Tornou-se, pra mim, um raro modelo de integridade de vida, arte e ativismo.
Em 2017, tenho “Re-habitar” ainda mais perto de mim. Com a catástrofe ambiental sendo cada vez mais uma realidade, com a “Intrusão de Gaia” (termo de Isabelle Stangers) nos fazendo perder todas as referências e com a chegada do Antropoceno, essa era geoológica que só deverá dar lugar a uma outra muito depois de termos desaparecido da face da terra, como diz Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski (em “Há Mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins”, 2014), entendo mais dos apontamentos de Snyder e de sua antevisão disso tudo que hoje vivemos. Sua forma de falar de poesia, antropologia, história e biologia e encadear ideias densas em frases simples nos toca na raiz daquilo que nos faz humanos. Sua escrita, tanto nos poemas quanto nos ensaios, evoca séculos de ancestralidade, como se se ao lê-lo viajássemos pelas florestas e pradarias ao lado de um xamã – Snyder – que apresenta cada ser vivo do lugar com calma e cuidado, explicando de onde vem, para que servem e como vivem em rede com todos que ali habitam.
É do livro que trago alguns trechos de “Re-Habitação”, ensaio que se baseia numa palestra dada na Conferência sobre Rehabitação na Escola de San Juan Ridge, em agosto de 1976, e publicada originalmente no livro “The Old Ways“, editado pela City Lights (de seu amigo e outro beat que descobri tardiamente, Lawrence Ferlinghetti) em 1977. O texto articula ecologia, história, poesia e memória pessoal para falar da necessidade de nós, seres humanos, nos tornarmos re-habitantes, seres que possam conhecer um pouco daquele “Jeito Antigo” dos habitantes de verdade de um terrritório, que estão ali há séculos, milênios. Um jeito, ele ressalta, que “está fora da história e é, para sempre, novo”, na tradução em português de Luci Collin.
Observando toda as diferentes árvores e plantas da floresta, um reflorestamento de Abetos Douglas e mais as pastagens que compunham o universo da minha infância, eu percebi que meus pais eram limitados num certo tipo de conhecimento. Eles sabiam dizer “Isso é um Abeto Douglas, aquilo é um cedro, isso é uma samambaia”, mas eu percebi uma sutileza e uma complexidade naquelas matam que iam muito além de uns poucos nomes. Quando criança falei com o velho índio Salish algumas vezes, ao longo dos anos, quando ele fazia as visitas – então, de repente, ele nucna mais voltou. Eu percebia o que ele representava, o que ele sabia,e o que isto significava para mim: ele sabia, melhor do que qualquer outra pessoa que eu tivesse conhecido, onde eu estava. Eu não tinha nenhuma noção de uma herança de branco americano ou europeu que oferecesse uma identidade; eu me definia pela ligação com o lugar. Mais tarde também compreendi que “língua inglesa” é uma identidade – e depois, através dos livros, recebi a visão cultural e histórica completa – mas nunca esqueci ou abandonei aquele princípio, o “onde” do “quem somos nós?. (p.242)
O propósito de toda essa vivência e estudo não é a auto-realização e o auto-conhecimento? Como o conhecimento do lugar nos ajuda a conhecer o Eu? A resposta, exposta de forma simples, é que todos nós somos serem compostos, não só fisicamente, mas intelectualmente, cuja característica individual e exclusiva, que nos identifica, é uma forma ou estrutura particular que muda constantemente no tempo. Não há nenhum “eu” a ser encontrado nisso e, ainda assim, bastante estranhamente, há. Parte de você está lá fora esperando para ser incorporada e outra parte de você está a seu lado, e o “agora” do momento sempre presente sustenta todos os pequenos eus transitórios em seu espelho. (p.247)
Não acontece apenas da integridade da terra norte-americana nativa estar ameaçada, ou as florestas e parques nacionais: é toda a terra que está sob uma mira, e qualquer pessoa, ou grupo de pessoas, que tentar permanecer num lugar e fazer bem alguma coisa, tempo suficiente para poder dizer, “eu realmente amo e conheço este lugar”, se encontra na posição de ser penalizado. A economia disso trabalha de forma que qualquer um que se atire à oportunidade de lucro rápido é recompensado – fazer agricultura adequada não corresponde a amontoar chances mais lucrativas – a correta administração de florestas ou de jogos significa fazer as coisas tendo em mente o futuro distante – e o futuro não pode nos apagar por isso de imediato. Fazer as coisas corretamente significa viver considerando que seus netos também desejarão estar vivos nesta terra, continuando o trabalho que nós estamos fazendo agora e com prazer intensificado”. (p.248)
Na primavera passada eu vi velhos fazendeiros no Kentucky que pertencem a um outro século. Eles são habitantes de verdade; eles assistem ao mundo que eles conhecem se desmoronar e evaporar a olhos vistos, em face a uma lógica diferente que declara: “Tudo o que você sabe e faz, e o modo que você faz isto, não significa nada para nós”. Quão maior não será a dor e a perda das elegantes habilidades por parte das remanescentes culturas primitivas e não-brancas do quarto mundo – que podem econhecer as propriedades especiais de uma determinada planta, ou como se comunicar com os golfinhos – habilidades que o mundo industrial pode nunca mais recuperar. Não que esses conhecimentos especiais e intrigantes sejam o ponto em questão: o que está perdido é o sentido do sistema mágico, a capacidade para ouvir a canção de Gaia naquele lugar. (p.248)
Re-habitacional se refere ao ínfimo número de pessoas que deixam as sociedades industriais (tendo coletado ou desperdiçado os frutos de oito mil anos de civilização) e então começam a retornar à terra, de volta ao lugar. Isso surge para alguns com a percepção racional e científica das interconexões e dos limites em nível planetário. Mas as demandas reais de uma vida comprometida com um lugar, e que se mantém com um pouco da energia solar das plantas que se concentram naquele lugar são, física e intelectualmente, tão intensas que essa é também uma escolha moral e espiritual. (p.249)