De bem com a memória

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Estou faz uns dias visitando pela primeira vez o Recife, e, entre outras cousas, tem me chamado a atenção a forma leve e autoconfiante que os pernambucanos lidam com sua memória e a do nordeste de modo geral. As principais manifestações culturais (como o frevo, o baião, o maracatu, o São João) são preservadas e tem seus próprios lugares (às vezes museus) de celebração, e mesmo movimentos culturais mais recentes, como o manguebit, parecem ter sua memória citada de forma constante na própria cidade – talvez não com o cuidado estrutural que poderiam ter, mas há de se realçar que estamos passando por um momento de agudo desmonte dos aparatos culturais do Estado Brasileiro, e não é diferente por aqui.

A bandeira de Pernambuco, por exemplo, está espalhada por diversos lados, e muita gente diz que os pernambucanos são bastante bairristas, os recifentes em particular se considerando a “capital do Nordeste”. Mas bairrismo me remete quase de imediato a um ranço impositivo e autoritário que exagera e considera tudo que veio do lugar como melhor, o que acontece frequentemente na cultura gaúcha de onde vivo e que por aqui passa longe – pelo menos nessa minha impressão rápida de uma semana por aqui.

A simples existência de um Museu como o do Homem do Nordeste, mantido pela Fundação Joaquim Nabuco, ligado ao MEC, já atesta essa relação saudável com a memória. É um museu antropológico que organiza exposições contando a história do povo da região a partir de artefatos do dia a dia do nordestino, do sertão ao litoral, do catolicismo de Padre Cícero aos orixás do candomblé. Quando visitei o espaço, estava lá sua exposição permanente do acervo e algumas temporárias, como as do grande xilogravurista J. Borges e uma chamada “Nordeste Mix”, literalmente uma curadoria remix entre tradição e novidade a partir do material do espaço.

Faço um exercício de imaginar um museu do tipo no Rio Grande do Sul. E não consigo pensar em nenhum espaço assim no RS que não traga um forte ranço da tradição desenvolvida pelos CTGs, espaços autoritários que, ao impor “o que pode ser e o que não pode” na tradição gaúcha, acabam por criar a imagem de um gaúcho elitista que hoje pouco tem a ver com aquela que a originou – e que também fez ressoar Brasil afora a imagem de um bairrismo tóxico e conservador que virou piada. Algo que é muito distante da preservação livre, sem tantas imposições, que se faz aqui: a imagem do nordestino estabelecida no museu é muito mais próxima ao povo porque é o povo, daí se tendo uma cultura muito mais inclusiva e livre do que a que é propagada como cultura gaúcha por aí.

Alguns podem alegar que a cultura criada nos CTGs não é a cultura gaúcha, mas um simulacro conservador dela, a “ideologia do gauchismo” como muitos estudiosos dessa área chamam, e que o que ser gaúcho está cada vez mais distante dos CTGs e próximo do dia a dia. Uma identidade mais ampla, portanto, que é endossada pelo resgate de certas proximidades com a cultura platina via música (penso na “Estética do Frio” pensada por Vitor Ramil) mas também na redescoberta do papel dos negros na Revolução Farroupilha e da forte presença do indígena no Estado. Mas essa é uma discussão muito mais complexa, e que as impressões que registro aqui nem tem a intenção de aprofundar, pelo menos por hora.

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Diário da tese (15): descrever, descrever, descrever

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Descrever é uma prática comum no jornalismo, nem tanto naquele que é produzido diariamente, mas sim naquele feito com tempo, cuidado e que passa por muitas mãos, seja na hora de mexer no texto (no vídeo, no áudio, em desenho, em site, ou em tudo isso misturado) ou a partir de fontes as mais diversas possíveis. Também é na antropologia, na escrita dos diários de campo etnográficos, em que os detalhes são importantes e a ação observada (e participada) é fundamental para se construir boas considerações teóricas. Não é raro de ver antropólogos com diários de centenas –  milhares! – de páginas de descrição profunda de detalhes para “transformar o exótico em familiar, ou o familiar em exótico”, como diz Roberto Da Matta em “O ofício do etnógrafo, ou como ter anthropological blues“ (1978), já citado por aqui.

E também é parte fundamental do trabalho que use a Teoria Ator-Rede como guia metodológico, como é o meu caso. Mas um trabalho de descrição de redes (de actantes, seres que agem, sejam eles objetos ou humanos), ao contrário do que talvez possa se imaginar, não é uma tarefa simples. Latour, em Reagregando o Social (2012, p.209) diz que a descrição completa, observar um estado de coisas concreto, descobrir o único relato adequado a uma situação, é uma tarefa muito desgastante: “o simples ato de registrar alguma coisa no papel já representa uma imensa transformação que requer tanta habilidade e artifício quanto pintar uma paisagem ou provocar uma complicada reação química (LATOUR, 2012, p.199)”.

Em diversos momentos, o caráter maçante de uma descrição pode nos fazer substituí-la por explicações trazidas por entidades vagas como “Sociedade, Capitalismo, Império, Normas, Individualismo, Campos”, o que faz com que o social escape pelas mãos. Como diz o pesquisador francês: “Ou as redes que tornam possível um estado de coisas são plenamente desdobradas – e, nesse caso, acrescentar uma explicação seria supérfluo – ou “acrescentamos uma explicação” declarando que outro ator ou fator deve ser levado em conta, de sorte que a descrição avance mais um passo. (LATOUR, 2012, p.200).

Trago a descrição pra este diário porque é justo neste processo de descrição do “estado das coisas” das redes de mediação na Mídia Ninja que me encontro neste momento. Ninguém disse que seria fácil, e não tá sendo: são páginas tentando buscar as melhores palavras para descrever como a Mídia Ninja chegou até a cobertura das manifestações de 2013, por exemplo. Muita coisa aconteceu entre 2006 e 2013 na rede que deu a sustentação à formação da Mídia Ninja, o Fora do Eixo, e a decisão de escolher o que foi importante (fez diferença) e o que não fez é sempre uma escolha difícil, ainda mais se tratando de uma rede que, por si só, já não é fácil de entender e tem um caminho muito distinto de redações jornalísticas mais tradicionais. Um caminho pra escolher o que está importando naquele dado momento analisado sempre parece ser as provas: se os atores não deixam provas que agem, ou deixam provas que não conseguimos rastrear de modo a compor um relato convincente dessas ações neste trabalho, então esse ator não vai estar na narrativa. A descrição não deixa de ser o resultado do rastreamento das associações entre actantes. Um trabalho de detetive. Ou de jornalista?

No caso da TAR, há ainda o fato de não separar os objetos dos sujeitos na hora da descrição. Então, se dado objeto está importando em dado momento, ele também vai ser descrito. Na prática, isso significa que você vai ter que descrever aspectos “técnicos” que demandam muita pesquisa para dominá-los a ponto de conseguir produzir uma boa narrativa. Um exemplo do trabalho que tenho feito: o twittcasting, software/aplicativo de streaming usado em junho de 2013 na Ninja. Os momentos de maior visibilidade do grupo se deram a partir de transmissões ao vivo do aplicativo usado a partir de um Iphone, uma prova suficiente de que ele agiu modificando outros atores e fazendo diferença. Mas como ele funciona? quem produziu? quais são os códigos que fizeram ele possibilitar a narrativa de uma dada realidade no que costumamos chamar de “ao vivo”? É necessário abrir esta caixa-preta para entender. E isso não é tarefa fácil para se fazer quando há outros outros atores que também esperam para ser descritos em detalhes.

Felizmente, há boas descrições em diversos relatos atores-rede. Tenho tentado ler alguns para me inspirar e ver melhor como posso construir a minha narrativa. Além dos já citados em outros posts, dois textos que são essenciais para a descrição de objetos técnicos estão abaixo, com seus respectivos arquivos em PDF; o último é indicação de William Araújo, colega doutorando e também um investigador ator-rede.

AKRICH, Madeleine.The De-scription of Techinical Objects. In: BIJKER, W. E., LAW, J. (Eds.).Shaping Technology/ Building Society. Studies in Sociotechnical Change. Cambridge: The MIT Press, 1992, p. 205-224.

CALLON, Michel. (2001). Writing and (Re)writing Devices as Tools for Managing Complexity. In J. Law and A. Mol (Eds.) Complexities in Science, Technology and Medicine. Durham, N. Ca., Duke University Press.

 

Diário da tese (9): o pioneiro Fleck

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As duas aulas finais da disciplina de Antropologia da Ciência que fiz neste primeiro semestre de 2016 foram dedicadas a um autor hoje conhecido na filosofia da ciência/sociologia do conhecimento e nos estudos de ciência e tecnologia (STS), mas desconhecido fora daí: o médico Ludwik Fleck. Hoje ele é considerado um dos pioneiros destas áreas, referência bastante citada na antropologia, sobretudo nos estudos relacionados a saúde, e a influência de sua obra se espalha por muitas das ideias da TAR. Mas nem sempre foi assim, e este post é um pouco para contar a sua história, ainda pouco conhecida.

Em 1935, Ludwik Fleck trabalhava no departamento de medicina interna do hospital de Lviv, sua cidade natal, na Ucrânia quase fronteira com a Polônia. Atendia e exercia funções administrativas durante à tarde, e, pela manhã, se debruçava em leituras de filosofia, sociologia e história da ciência, estimulado pela formação interdisciplinar que teve, como médico, no ambiente efervescente em ideias da universidade de Lviv. Desde 1927 também publicava artigos acadêmicos na área da epistemologia da ciência, “sociologizando” sua área de atuação, a medicina, ao percebê-la como uma atividade coletiva complexa, em que fatores externos a certas descobertas médicas, como o contexto histórico em que foram produzidas, o sistema de ideias vigente e o caráter coletivo de qualquer saber, tinham extrema importância e, portanto, deveriam ser estudados com mais dedicação do que à época se fazia.

As ideias trabalhadas por Fleck teriam seu clímax com o livro “Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico“, publicado em alemão por uma editora de Basiléia, Suiça, em 1935. Numa linguagem não dirigida a especialistas, o livro investiga um caso importante da história da medicina – o desenvolvimento do conceito de sífilis – para, a seguir, tecer suas considerações epistemológicas sobre a estrutura sociológica do saber. Para Fleck, o conhecimento científico, como o conceito da sifílis, se dá a partir de uma série de elementos – o indivíduo, o coletivo e a realidade objetiva – sendo que não há distinção prévia entra qual dos três elementos seria mais importante nem uma observação livre de suposições. Os coletivos de pensamento são o que permitem emergir a produção de um determinado fato científico – coletivos entendido aqui como uma comunidade que desenvolve uma mentalidade própria de comunicar, agir e pensar.

Quando apareceu, a obra de Fleck parecia ter todas as qualidades para ser exitosa; entretanto, teve pouca repercussão. Uma série de situações, da consolidação do Nazismo na Alemanha à somente uma resenha da obra ter sido veiculada em uma revista acadêmica de filosofia e técnica, fizeram com que a obra do médico judeu não circulasse pela Europa. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a ocupação nazista de Lviv, Fleck seria levado aos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald, onde trabalharia forçado nos laboratórios nazistas. Ao fim da guerra, em 1946, junto de sua esposa e filho voltaria a sua Lviv natal. Trabalharia como médico, professor e membro de associações científicas de seu país, tendo por foco não mais a epistemologia da ciência mas o atendimento clínico e os estudos de microbiologia. Morreria em 1961, em Israel.

No ano seguinte a sua morte, em 1962, o alemão Thomas S. Kuhn publicaria aquele que seria o livro mais lembrado de sua obra: “A Estrutura das Revoluções Científicas“. No prólogo, Kuhn cita o livro de Fleck, de passagem, como “uma monografia quase desconhecida de Ludwik Fleck (…), um ensaio que antecipa muitas de minhas próprias ideias” (KUHN, 2006, p.11). Publicado em inglês, por uma grande editora, Kuhn chamaria atenção para o livro de Fleck, que 17 anos depois seria traduzido para o inglês e publicado pela University of Chicago Press, nos Estados Unidos, com prefácio do alemão. Era o início de uma redescoberta da obra, que na sequência do inglês teria suas traduções para o italiano (1983), espanhol (1986) e francês (2005), antes da brasileira, em 2010. Segundo Curi e Santos (2011), só recentemente começam a ser exploradas outras possibilidades do livro de Fleck para além das noções de estilo de pensamento e coletivo de pensamento, consideradas precursoras e semelhantes as de epistémè de Michel Foucault e de paradigma de Kuhn.

No prefácio à edição em francês de “Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico”, Latour critica aqueles que consideram a noção de coletivo de pensamento de Fleck como precursoras de Foucault e Kuhn, dizendo que Fleck “não tratava apenas de estudar o contexto social das ciências, mas de perseguir todas as relações, embates e alianças envolvidas na produção do conhecimento e da história do pensamento” (CURI & SANTOS, 2011). Latour ainda dedicaria um de seus vários boxes de “Reagregando o Social” a Fleck, o que me faz ainda mais crer que muito de seu pensamento enquanto TAR, sua noção do social enquanto movimento – ação – transformação, está em Fleck.

Se quiser dar uma olhada no livro e conferir por si o quanto esta influência existe (ou não), aqui vai a edição em espanhol.

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Estes dias estava lendo a Revista Piauí 117, de junho de 2016, que comprei pela soberba capa (acima) com a cúpula golpista no Brasil retratada como no clássico disco “Tropicália” – aliás, algo que não fazia há anos, comprar revista pela capa. Uma das reportagens da edição é a “Conspiração Amarga“, escrita por Ian Leslie para o Guardian e traduzida para o ptbr por Sergio Tellaroli, um relato amplo sobre a construção da ideia de que a gordura é a grande vilã da alimentação, quando se sabe hoje que o açúcar sempre teve papel mais nocivo ao corpo humano do que a gordura. O texto narra como certos cientistas dos EUA e institutos científicos ligados ao governo de lá tiveram papel considerável na popularização da ideia de que a gordura deveria ser reduzida drasticamente da alimentação cotidiana do cidadão estadunidense, tudo isso a partir de pesquisas com amostras bem questionáveis. E não é que, lá pelo meio da matéria, quando Leslie fala dos meandros internos da construção de verdades nos “coletivos de pensamento” na ciência da nutrição, ele cita Fleck? Foi uma coincidência curiosa ler Fleck em uma revista como Piauí no mesmo momento em que lia seu livro “Gênese e Desenvolvimento”. Zeitgeist.

Imagem de Fleck daqui.

Diário da tese (5): seguindo em frente

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Começo o 2016 com a cabeça ainda nos comentários e retornos dos congressos e conversas que tive em novembro e dezembro de 2015, nas possíveis implicações que estes terão na tese e, ao mesmo tempo, com a preocupação de seguir em frente na pesquisa de campo, por isso este primeiro texto de 2016 vem só em fevereiro.

Como falei no post anterior, foram dois os eventos acadêmicos que participei: o II Congresso Internacional de Net-ativismo, em São Paulo, e a XI Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), em Montevideo. No primeiro apresentei um artigo que não trata diretamente do assunto da minha pesquisa, e sim de desdobramentos do que norteava o projeto com que entrei no doutorado – que tratava de jornalismo e a cultura hacker – com a discussão do conceito de mídia tática, muito difundido no Brasil na década de 2000 e próximo às minhas ações práticas no BaixaCultura (página que edito desde 2008) e na Casa da Cultura Digital em São Paulo.

A ideia do trabalho foi de resgatar o histórico do conceito, originária da leitura de Michel De Certeau  em “A Invenção do Cotidiano” (1994) sobre as práticas e táticas criativas que a cultura popular produz com os artefatos e técnicas que a rodeiam, e que apareceu organizado como um conceito estruturado pela primeira vez com Geert Lovink e David Garcia no seminal “O ABC da Mídia Tática“, de 1997. É uma concepção teórica originária do contexto europeu pós queda do muro de Berlim e que se desenvolveu em festivais e redes de comunicação, tecnologia e ativismo no final da década de 1990 e início dos anos 2000 como “uma tentativa de identificação de uma tendência de convergência nos campos políticos e culturais desta época, influenciada pelo crescimento da produção midiática viabilizada por equipamentos baratos e de fácil utilização”, como diz Lovink no texto “Atualizando a mídia tática. Estratégias de midiativismo”, presente num dos capítulos do livro “Informação, Conhecimento e Poder: Mudança tecnológica e inovação social“, de 2011.

No artigo, identifiquei alguns exemplos da chamada “era de ouro” das mídias táticas, no final da década de 1990, como o flood net em apoio aos zapatistasdesenvolvido pelo Eletronic Disturbance Theater, uma estrutura ad hoc com os integrantes do coletivo Critical Art Ensemble (a ação está documentada neste link); o caso Dow Ethics, proposto pelo Yes Men, em que dois integrantes do coletivo aplicam um “trote” clássico na BBC britânica quando um deles se passa pelo executivo da empresa Dow Chemicals e concede uma entrevista ao vivo assumindo que vai pagar os custos do desastre químico promovido pela empresa causado na cidade indiana de Bhopal. Pro Brasil de 2016, seria como se um integrante de um coletivo de ativistas tivesse convencido a Globo de que era um executivo da Samarco, principal responsável pela tragédia em Bento Rodrigues – Mariana, e concedesse entrevista num programa como o Jornal da Globo assumindo que a empresa vai pagar uma indenização de bilhões de reais às famílias atingidas (o que, convenhamos, deveria ser o mínimo, não?). Fiz uma versão desta primeira parte do artigo neste post do BaixaCultura. Num segundo momento, trouxe um breve histórico da mídia tática no brasil, enfatizando a (re) apropriação feita a partir da gambiarra e uma aproximação com os princípios da ética hacker. Farei uma versão desse post pro BaixaCultura nas próximas semanas.

No segundo apresentei um artigo que discutia a mediação e os objetos técnicos na Mídia NINJA, a partir de alguns dados da primeira parte da observação participante que estou fazendo. [O arquivo em PDF que fiz para guiar a apresentação está aqui]. A proposta foi discutir, no GT de Simetria, Agência e Etnografia: Experiências de Pesquisas Sobre Relações entre Humanos e Não Humanos, qual a agência dos objetos na mediação jornalística da NINJA.

Foi um momento de muitos aprendizados sobre a prática da etnografia, área que os antropólogos criaram e dominam, e alguns retornos importantes sobre a pesquisa. Por exemplo: a ideia de levar menos pressupostos a campo e descrever aquilo que acontece, de forma direta, deixando para os atores definirem (se quiserem) aquilo que fazem – caso, por exemplo, de jornalismo ou ativismo – e não o pesquisador “explicar”, em 2º mão. Outra: campo é deslocamento, não só estar em um lugar “físico”, o que significa que o trabalho de campo pode ir além do espaço geográfico e percorrer as redes sociais e outros “lugares” da internet – aqui, a ideia da etnografia multi-situada entrou para ficar. Mais uma: não há resposta definitiva sobre se os atores são intermediários (que não “traduzem” nada) ou actantes (“que fazem outros fazerem coisas”) na mediação: essa resposta será temporária para um dado momento (o analisado), no curso da ação.

Todas ideias podem parecer óbvias para quem já está na antropologia há muito tempo, mas este não é caso aqui. A participação na RAM só reforçou, pra mim, o quanto faz bem transitarmos por áreas de conhecimento que não a nossa de origem (no meu caso, a comunicação e o jornalismo): novos olhares para assuntos já dados como “certos”, complexificação de questões aparentemente simples são algumas das contribuições que o sair da zona de conforto da nossa área original de pesquisa podem trazer. Em especial, quando o ponto de saída é a comunicação e o de passagem é a antropologia, as diferenças são ainda mais visíveis: há um mundo de possibilidades e aberturas nos estudos da antropologia que são difíceis de serem encontrados na comunicação, uma área às vezes tão fechada em discussões restritivas, sobre demarcação de territórios e fechamento de conceitos enquanto o mundo lá fora acontece múltiplo, desconexo, indisciplinar.

P.s: Na linha da etnografia, um texto clássico (1978) da área que li e gostei se chama “O ofício do etnógrafo, ou como ter anthropological blues“, do Roberto Da Matta. Fácil e bom de ler, traz alguns ensinamentos para ter este tal anthropological blues do título dizendo, resumidamente, que em campo o desafio é 1) transformar o exótico em familiar; e 2) transformar o familiar em exótico. Aqui tem ele pra baixar em PDF.

(a foto é do céu do interior do Uruguai, da Sheila Uberti)

diário da tese (4): jornalismo e/ou ação?

 

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O semanário da tese falhou nas últimas semanas, mas nesta cá estamos, com um texto menorzinho, com um dos temas que desde a qualificação (ou até antes dela) tem me perseguido na pesquisa: a relação entre jornalismo e/ou ativismo.

Uma das perguntas que Fábio Malini fez na banca ainda ressoa por aqui: quão ativista deve ser o jornalista? ou, do contrário: quão jornalista deve ser o ativista? Pelo entendimento de mediação da TAR que resgatei no post passado, refaço a pergunta: quão ativista consegue não ser o jornalista? Na mediação, qualquer que seja, não existe neutralidade, e sim a influência de uns mais do que outros na rede de mediações envolvidas. Sabe-se que no jornalismo, a ideia de ser objetivo, de buscar fazer um relato mais próximo possível à dita realidade é, a grosso modo, um procedimento: nunca vai se conseguir ser completamente objetivo, mas é possível ser mais ou menos objetivo de acordo com os procedimentos adotados. O jornalismo moderno do século XIX pra cá adota esse lema como regra de ouro de seus manuais. Mas as redes modificam esse cenário ao mostrarem, de modo mais rápido e fácil, os múltiplos pontos de vista possíveis de um dado acontecimento, deixando mais evidente o que antes era velado: que o relato jornalístico fruto desses procedimentos objetivos pode estar muito mais longe da realidade que se quer mostrar do que a instituição “jornalismo” faz crer.

Assim, o “lado” em que aquele relato foi produzido é mais escancarado do que antes, e muitas vezes mais do que a instituição jornalística tradicional gostaria.  Se esse lado é a manutenção de um status quo que vai contra direitos humanos fundamentais (como o caso, por exemplo, do PL do Aborto do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que dificulta o acesso ao aborto legal para vítimas de violência sexual), como não se posicionar? Como fazer uma matéria e usar de procedimentos para atingir uma objetividade sabendo que estes procedimentos podem (supostamente) equilibrar lados tão desequilibrados historicamente e na realidade brasileira atual como o direito das mulheres sobre seu corpo?

Esse é um dos dilemas do jornalismo hoje, que é traduzido de forma rápida na frase “a transparência é a nova objetividade“. Numa situação como a citada acima, alguns jornalistas, professores e pesquisadores da área estão a trabalhar com a ideia de que a transparência – assumir uma posição, um lugar de fala – pode substituir a objetividade na cultura jornalística como procedimento (ou ritual estratégico, segundo Gaye Tuchman) para relatar determinado acontecimento. A transparência de adotar determinada posição em detrimento de outras é uma das marcas de certo midiativismo, o que embaralha mais a questão discutida no post anterior sobre “quando se é jornalismo” e “quando se é ativismo”. É possível separá-los?

Estou resumindo aqui uma questão que é muito mais complexa só para vocês perceberem o tamanho que é essa discussão. Sigo, nesse momento, por dois caminhos apontado pela banca de qualificação: a relação do jornalismo-ativismo, de um lado, e de outro a antropologia. Ao me aprofundar na Teoria Ator-Rede, me aproximei da área de onde ela nasceu, a antropologia e a sociologia da ciência, e tenho ido mais na origem de algumas concepções antropológicas para esmiuçar tanto a ideia de mediação proposta por Latour e cia quanto a noção de agência não humana.

Não por caso, dois artigos que estava trabalhando (e que me fizeram não postar aqui nas últimas semanas) são, justamente, para dois congressos nessas duas áreas: O II Congresso Internacional de net-ativismo, entre 16 e 19 de novembro em São Paulo, e a XI Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), entre 30 de novembro e 5 de dezembro, em Montevideo. Espero com eles conseguir entender e esmiuçar melhor algumas questões, que trago pra cá depois que terminar estes eventos.

 

(foto Mídia NINJA/Brasil de Fato)