Os Almôndegas talvez tenha sido uma das mais importantes descobertas da minha vida adulta.
Lembro bem quando os conheci, em 2007; um amigo de um amigo, de Pelotas como a maior parte dos integrantes, trouxe um pendrive com 16 músicas, uma espécie de The Best Of dos 4 discos que eles produziram nos anos 1970 (até hoje não sei como ele conseguiu, mas chuto que “ripou” de LPs). À época, pouca coisa se encontrava deles; não havia streaming, torrents eram escassos, discos esgotados. Bateu logo que escutei “Sombra Fresca e Rock no Quintal”, “Androginismo”, “Em Palpos de Aranha”: como assim nunca havia ouvido falar deles antes? como assim existia uma banda da minha região que misturava rock com regionalismos gaúchos sem ser careta e conservador e ainda por cima com leveza, bom humor e sagacidade? Pois sim, havia os Almôndegas, praticamente inventando a música pop urbana gaúcha, na melhor escola “rock rural” em voga daquele início/meados dos 1970 da qual Sá, Rodrix & Guarabira e a turma do Clube da Esquina eram parentes distantes, ainda que próximos. Inventar um modo de representar uma juventude, e com isso um modo de estar no mundo, é abrir uma porta atemporal de permanência na cultura. Não é pouca coisa. Por isso o show de retorno deles, depois de mais de 40 anos sem tocar com a formação original (faltou Pery), foi um acontecimento; de contemporâneos que cresceram ouvindo a banda, hoje a maioria com 50 e 60+, à minha geração, que os conheceu e cada vez mais os celebra na internet, todos pareciam muito comovidos, cantando todas as letras num auditório lotado, emocionados em ver, finalmente juntos, bem e ao vivo, aquela que talvez seja a mais importante banda da música popular gaúcha, como falou o @vitorramil.satolep , os “nossos Beatles”, como disse o @arthur.de.faria , que entende do riscado, ambos exagerados (ou não?).
Os vídeos, toscos, foi o que deu pra fazer estando emocionado demais.
leofoletto
Cambalache
Quem me conhece sabe que gosto de tango – como de jazz, milonga, afrobeat entre muitas outras coisas que não cabe aqui listar. Quem me conhece de mais perto sabe que “Cambalache“, escrito em 1934 por Enrique Santos Discépolo (imagem acima), é um dos meus tangos favoritos, por motivos que nunca sabemos explicar bem quando se trata de sentir, mas vou tentar organizar algumas impressões aqui sobre ela.
Escutei pela primeira vez a música na faculdade, quando estagiava num programa semanal na TV da universidade em que estudava. O programa era sobre psicologia e tinha a participação de dois professores-psicólogos da universidade e um aluno deles, no formato mais utilizado pela TV na época: todxs sentados numa bancada conversando sobre alguma tema – no caso, psicologia. Eu trabalhava na produção, preparando toda semana um vídeo de uns 3 minutos com diversas cenas de filmes que dialogavam com o tema escolhido. Locava os filmes (em fita) indicados pelo pessoal, selecionava os trechos e editava numa mesa de edição linear, um processo que nem consigo imaginar o quão mais fácil é hoje do que naqueles inícios de anos 2000.
Um dos últimos programas que editei foi o de despedida de um dos professores-psicólogos da universidade. Ele havia se aposentado e já estava de mudança para a Argentina, seu país de origem. Preparamos com toda a equipe uma edição especial e a mim calhou de fazer o que sempre fazia, o vídeo temático. Fui conversar com o professor argentino sobre o que ele queria ver/ouvir no programa, já que o tema era ele. Lembro de ambos estarmos sentados na sala de edição da universidade, com aqueles vários monitores e botões típicos da época, quando perguntei a ele: “qual a música que você quer escutar no programa?”. Foi então que ele me falou de “Cambalache”, disse que era a sua música favorita, comentou de como a letra composta no início do século passado ainda era perfeitamente atual no início desse século XXI.
Não lembro de como consegui a música, não existia Youtube e baixar sons “velhos” como “Cambalache” não era algo tão fácil à época. Mas sei que tocou no programa de despedida, ao final da edição, e continuou soando com os créditos finais. O professor depois me abraçou, agradeceu com os olhos marejados, e desde então eu nunca mais esqueci a música. Ouvi ela em diversas outra vezes, tanto na sua versão clássica com Julio Sosa, de 1955, quanto nas versões brasileiras de Caetano Veloso (de 1969, respeitosa e ótima interpretação) como na de Raul Seixas, que traduziu e deu um tom rock pra versão (de 1987; não gosto muito). Até mesmo em tempos de Netflix ela aparece: no 2º episódio da 2º temporada da série “Narcos”, Wagner Moura (ou Pablo Escobar) canta “Cambalache” no chuveiro enquanto seus capangas invadem um prostíbulo e matam várias pessoas, naquelas raras combinações de música, interpretação e imagem que, apesar da crueldade, nos dão um certo arrepio de emoção.
“Cambalache” é um tango extremamente popular, mas diferente da maioria que você ouve com frequência, não fala de amores, noite, corridas de cavalo nem bebida: fala de política. É uma reclamação repleta de citações e ironias sobre um mundo que não é mais o que era – na época, o século XX se iniciava e Discépolo, nascido nem 1901, usava com maestria as palavras para tecer uma crítica social contundente a certas práticas da época (ainda comum hoje, e que provavelmente serão por muitos séculos). Em 2018, o tom algo moralista da canção pode até ser apropriado por defensores brasileiros verde-amarelos “da moral e dos bons costumes”, que podem interpretar a música como uma crítica à tudo que cheira a política, mesmo que a letra genial permite vários outros pontos de vista – inclusive o de ir contra o poder estabelecido, perspectiva esta que gosto mais.
Sobre o professor, nunca mais vi. Soube que ainda está vivo e ativo, na Argentina.
Que el mundo fue y será una porquería ya lo sé… (¡En el quinientos seis y en el dos mil también!). Que siempre ha habido chorros, maquiavelos y estafaos, contentos y amargaos, valores y dublé… Pero que el siglo veinte es un despliegue de maldá insolente, ya no hay quien lo niegue. Vivimos revolcaos en un merengue y en un mismo lodo todos manoseaos…
¡Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor!… ¡Ignorante, sabio o chorro, generoso o estafador! ¡Todo es igual! ¡Nada es mejor! ¡Lo mismo un burro que un gran profesor! No hay aplazaos ni escalafón, los inmorales nos han igualao. Si uno vive en la impostura y otro roba en su ambición, ¡da lo mismo que sea cura, colchonero, rey de bastos, caradura o polizón!…
¡Qué falta de respeto, qué atropello a la razón! ¡Cualquiera es un señor! ¡Cualquiera es un ladrón! Mezclao con Stavisky va Don Bosco y “La Mignón”, Don Chicho y Napoleón, Carnera y San Martín… Igual que en la vidriera irrespetuosa de los cambalaches se ha mezclao la vida, y herida por un sable sin remaches ves llorar la Biblia contra un calefón…
¡Siglo veinte, cambalache problemático y febril!… El que no llora no mama y el que no afana es un gil! ¡Dale nomás! ¡Dale que va! ¡Que allá en el horno nos vamo a encontrar! ¡No pienses más, sentate a un lao, que a nadie importa si naciste honrao! Es lo mismo el que labura noche y día como un buey, que el que vive de los otros, que el que mata, que el que cura o está fuera de la ley…