Mozfest, Amsterdam 2024

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Reativando esse blog depois de anos para escrever um breve relato de minha ida a Amsterdam no início de junho de 2024, sobretudo para participar do Mozilla Festival.

Considero a Mozilla – que, entre mil outras coisas, cuida do navegador Firefox – um dos atores globais mais importantes na luta por uma internet melhor, por isso fiquei feliz de ter me aproximado mais da valente e diversa comunidade da organização – uma comunidade que conheci mais proximamente (embora não tanto como gostaria) em 2018-2019 quando fui um dos Mozilla Open Leaders em um projeto conjunto com os amigos Mariana e Jorge do Artica Online, do Uruguai, e Dani Cotillas (Espanha).

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Neste ano, o tema do encontro foi “AI Trustworthy”, com o mote “On Togetherness & Solidarity”, o que já mostra um pouco da pegada do evento: juntar ativistas, desenvolvedores (muitos do software livre), artistas e participantes de organizações da sociedade civil para destrinchar e buscar construir sistemas de IA mais justos e transparentes, ou ao menos mitigar seus problemas caso eles realmente precisem existir. Este foi o tema mais comentado numa das principais mesas do evento, “We are Life: AI Accountability During War“, onde ativistas/pesquisadores da Ucrânia (Olga Tokariuk), Palestina (Marwa Fatafta) e do Congo (Kambale Musavuli) lembraram como a IA pode ser (e está sendo) usada para matar. Marwa Fatafta, em particular, deixou claro e de forma eloquente como os sistemas de IA em drones e de reconhecimento facial estão sendo usados por Israel para literalmente escolher quem deve viver e quem deve morrer na Palestina, enquanto Kambale Musavuli nos lembrou dos estragos em seu país que a busca por matéria-prima para IAs tem causado – o país tem milhares de trabalhadores (e crianças!) em condições precárias em minas de cobalto, metal azul prateado usado para fabricar baterias de íons de lítio que fornecem energia para diversos dispositivos tecnológicos.

Chamou atenção também o papel do jornalismo nessa edição do evento. A parceria com o Pulitzer Center rendeu três mesas onde jornalistas do mundo todo contaram de suas investigações sobre Accountability AI, dos “ghost workers” por trás dos treinamentos de dados para sistemas de IA até a proliferação de deep fakes turbinados por IA no WhatsApp. Uma das principais falas do evento foi também de uma jornalista, Mona Chalabi, que faz visualizações de dados incríveis para assuntos de interesse público no NY Times e no Guardian, mostrando como até aí é possível trazer características mais humanas – portanto, sensíveis e divertidas – que nos tiram do torpor do “doom scrolling” dos automatismos tecnolinguísticos.

Outro momento importante pra mim foi ver a Royal Shakespeare Company, uma das mais tradicionais companhias de teatro do mundo, que não se furta a brincar com tecnologias digitais de co-presença desde 2011, quando citei eles no meu livro sobre teatro digital, “Efêmero Revisitado“.

Dá para assistir todas as principais mesas no canal do Youtube.

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Em Amsterdam, também conheci parte do (enorme) departamento de Media Studies da Universidade de Amsterdam, uma das principais referências hoje nos estudos de plataformização, comunicação política e cultura digital. Meu guia por um dos campus, Gabriel Pereira me mostrou também como foi incorporado à universidade o headquarters da Companhia das Índias Orientais, provavelmente a 1º startup colonial do planeta, que entre 1603 e 1799 formou colônias em diversos cantos do planeta (inclusive o Brasil e especialmente a Ásia) para trocas comerciais, usando para isso mão de obra-escrava e diferentes (e cruéis) formas de exploração de pessoas e locais. Gabriel também me levou para um ótimo restaurante vietanamita no centro da cidade, uma portinha ao lado de um coffeshop numa rua estreita perto da Universidade.

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Conheci também, finalmente de forma presencial, Geert Lovink, ativista e pesquisador referência nos estudos críticos da internet desde os anos 2000. Dele publicamos, ano passado, “Extinção da Internet” – que revisei a tradução e escrevi o prefácio – primeiro livro completo publicado no Brasil por Geert, que tem uma extensa carreira de livros e obras publicadas. Visitei a sede do INC, Institute of Network Cultures, criado em 2004 por Geert dentro da Universidade de Ciências Aplicadas de Amsterdam, um enclave difusor de conhecimento sobre cultura da internet, conhecimento livre, arte e política digital, sobretudo a partir de seus livros (todos livres pra download) que documentam as transformações da internet ocorrida nessas duas últimas décadas. Levei alguns exemplares do “Extinção da Internet” para Geert, além do “A Cultura é Livre” e “Manifestos Cypherpunks” e trouxe de volta alguns outros do INC.

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Deu para conhecer um pouco Amsterdam, de bicicleta e de barco, e de visitar também um local histórico particular do meu interesse: a praça Spui, lugar dos venturosos Provos de Amsterdam, um dos primeiros movimentos da contracultura dos anos 1960 e inspiração até mesmo para o Festival BaixoCentro de SP, em 2011.

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Extremo: Crônicas da psicodeflação

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Terminei de ler “Extremo – crônica da Psicodeflação“, do Franco Berardi, terceiro livro dele publicado pela Ubu Editora e quarto que leio do autor. Uma parte diário outra “meditações” a partir da pandemia. Talvez o mais irregular que li dele, também porque escrito no calor do momento. Ainda assim, ótimo pra refletir sobre esse período divisor da humanidade que é/será a pandemia. E também para acompanhar um pensamento em processo, vivo e se modificando ao vivo, sempre remix total e em rede com outras mentes, jamais tirado de um “nada” original que nunca existe.

Alguns trechos: “Era uma questão de levar, por meio da luta, o trabalho do cuidado para a esfera produtiva. Hoje, porém, fica claro que o movimento a ser promovido é o oposto. É necessário lutar para transformar todo trabalho produtivo em cuidado com a Terra, com a vida”. Guido Viale na p.121.

“Para quem vê bem o vírus (ou acredita que vê bem), a emergência é apenas uma contingência que passará se o vírus passar; para quem vê bem a emergência (ou acredita que a vê bem), o vírus será cada vez menos letal do que as consequências das políticas de emergência”. Wu Ming na p.119.

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Luigi d’Elia, “A Pandemia é como um Tratamento de Saúde Obrigatório Coletivo”, p.44, do diário de Bifo dia 23/3/2020.

Por fim, pra não ficar só no remix de outras falas, o próprio Bifo em um quase encerramento, profecia de atenção aos delírios das coisas reais, p. 127, 18/5/2020 no diário:

“Tudo vai ficar instável, como um bando de bêbados em um barco no meio da tempestade em alto-mar. É preciso nos preparar para um longo período de instabilidade e resistência e é preciso fazê-lo imediatamente. Resistência significa criação de espaços de autodefesa, de sobrevivência, de produção do indispensável, do afeto e da solidariedade.
Existem pelo menos 85 chances em 100, talvez 90 e até mesmo 91, de que a vida social piore, de que as defesas sociais se esfalecem, de que formas de controle tecnototalitário permaneçam agarradas ao corpo doente da sociedade, de que o nacionalismo belicioso prevaleça. É provável, provável, provável. Talvez inevitável”.

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Darcy Ribeiro nos ensina a re-imaginar futuros

Darcy Ribeiro com índios Kadiwéu, Mato Grosso do Sul, 1947. Foto Berta Ribeiro

Darcy Ribeiro com índios Kadiwéu, Mato Grosso do Sul, 1947. Foto Berta Ribeiro

Em setembro de 2020, à convite do Outras Palavras, participei do ciclo de debate “O Futuro do Trabalho no Brasil” na mesa chamada “Os serviços sofisticados: Cultura e Conhecimento“. Ao lado de duas pessoas que admiro bastante: Tatiana Roque, professora do Instituto Matemática da UFRJ, ativista da Renda Básica e ativa pensadora feminista e das subjetividades na esquerda brasileira; e Célio Turino, historiador, escritor, agente cultural, esponsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura no Ministério da Cultura de GIlberto Gil nos anos 2000.

Fui falar de cultura livre e da relação cultura e tecnologia que permeia meu trabalho faz mais de uma década – aqui está um breve texto sobre a mesa e o vídeo na íntegra. Porém, um pouco antes, fui atravessado por uma leitura recente que fala de utopia – e não distopia, palavra da moda e tão real pra esses tempos – e pensei que seria bom inserir alguns trechos dessa leitura para trazer um pouco de ideias que nos ajudem a repensar o futuro mesmo (ou principalmente) com as iminentes discussões sobre o fim do mundo, Antropoceno, Instrusão de Gaia, entre outros termos que falam da destruição do que chamamos de natureza de forma irreversível pela ação humana, ainda mais vísivel em 2020 no Brasil de Bolsonaro.

Por motivos diversos, acabei não usando na mesa o trecho resgatado da leitura em questão: “Utopia Brasil“, livro de Darcy Ribeiro, mais precisamente um texto desse livro chamado “IVY-MARAẼN, TERRA SEM MALES, 2997”, uma ficcão utópica do antropólogo (e também escritor de ficção) criador da Universidade de Brasília, vice-governador do Rio de Janeiro (Leonel Brizola era o governador) entre 1983-1986, entre muitas outras ocupações desse que é um dos maiores intelectuais brasileiros da história. Editei este trecho para transformá-lo no texto que segue logo abaixo, por dois motivos principais: o primeiro é que sigo achando importante lembrar do que nós, brasileiros e latino-americanos, somos capazes quando criamos entornos sociais que potencializem nosso modo de vida tradicional. E o segundo porque fiquei instigado em olhar para esse passado para encontrar uma (ou mais) solução para sair deste buraco que nos metemos, estimulado pela provocação trazida de uma entrevista recente de Bruno Latour à Ana Carolina Amaral, na Folha de S. Paulo:

É que —como posso dizer isso sem parecer desesperado?— se vocês administrarem uma solução, vocês salvam o resto do mundo. Porque em nenhum lugar há a mesma intensidade das duas tempestades se juntando, a ecológica e a política, como há no Brasil. O Brasil é hoje como a Espanha era em 1936, durante a Guerra Civil: é onde tudo que vai ser importante nas próximas décadas está visível.

Se hoje fomos agraciado em sermos o lugar onde todas as tempestades estão ocorrendo ao mesmo tempo, que seja também o lugar onde possamos jogar ideias possíveis sobre como viver apesar do fim. Seria o fim só o começo?

*

Buenas, gente. Agradeço o convite para participar do debate e poder dialogar com duas pessoas que admiro e acompanho o trabalho faz anos e que fizeram, ou estão fazendo, políticas públicas que são fundamentais para o Brasil, caso do Cultura Viva e dos pontos de cultura que Célio Turino foi um dos criadores; e da Renda Básica, em que Tatiana é uma das principais articuladoras da Rede Brasileira de Renda Básica.

O convite de Antônio para discutir o futuro do trabalho na cultura hoje, num governo que menospreza a cultura, me fez lembrar não da palavra que estamos nos acostumando a usar hoje para situar esse contexto político trágico – distopia – mas do seu contrário: UTOPIA. Sinto que também é necessário arejar nosso horizonte imaginativo para, então, pensar nos caminhos práticos pra chegar lá.

Nisso, começo aqui retomando um texto que conheci faz algumas semanas, de 1997, do Darcy Ribeiro – ele mesmo, antropólogo, escritor, político, vice-governador do Rio, aqui fazendo ficção utópica. O texto se chama “IVY-MARAẼN, TERRA SEM MALES, 2997”, e é um exercício imaginativo em que a américa inteira é uma só nação, ecofuturista, feminista, livre. É narrado em primeira pessoa por um cientista que faz um sobrevoo, de nave, pelo continente, chamado IVY MARÃEN, um bloco de 2 bilhões de gente, destacando alguns lugares em que ele mais prezava.

Ele começa falando dos Amazonidas, povo que habitam a grande região Amazônica, que convivem em harmonia com a natureza, uma gente feliz que tem por função ver a mata viver e crescer com seus milhões de seres vivos. O mais lucrativo para este povo, segundo Darcy, são as densas plantações de árvores frutíferas que dão as polpas e os sucos mais deliciosos que há – cupuaçu, maracujá, açaí, pupunha, murici. “É tambem bonito de ver e sentir o ritmo milenar de vida da floresta. Árvores antiquíssimas, ainda verdejantes. Outras empalidecendo, marcadas para morrer. Por baixo do manto florestal é insondável a trama de cipós, que descem das árvores ou sobem a elas. No chão, são lindos de ver os arbustos variadíssimos e arvorezinhas teimando para crescer com a nesga de sol que dificultosamente chega até elas.

Segue então para o Incário, região das nascentes do Amazonas, nos Andes, “onde as construções são edificadas ao redor de um templo de orações, num altar cortado na rocha viva”, em diálogo constante com os “pan-chinos” do oriente através do pacífico, sua principal fonte de renda. “O processo de conquista da autonomia e autodeterminação foi uma luta secular, em que tiveram que destruir as cidades de Lima e de La Paz, que funcionavam como agências de cristinização e europeização dos podos do Incário. Afinal, tiraram de lá toda a sua gente (…) deixando os que só sabiam ser euros para viverem como quisessem nas praias do Pacífico. (…) A partir do seu ser original, criaram uma nova civilização. Todos falam uma mesma língua local, desenvolvida a partir do quéchua e do aimara. Culturam velhos hábitos, sua antiga culinária, orgulhosos de terem dado ao mundo, de novo, a presença do império incaico, tão ameaçado de desaparecer“.

A nave então chega ao Pantanal, centro do continente, um dos grandes jardins da terra e um dos maiores centros fotográficos do mundo – que infelizmente, nesse setembro de 2020, está pegando fogo. Lá ele encontra o único grupo indígena da América do Sul que dominou o cavalo e fez do animal o principal parceiro na criação de gado, fonte principal de renda da região. “No meio daquele agual extensíssimo, encontramos gente vivendo em palafitas amplas e confortáveis, que cumprem duas ordens de funções em veículos semelhantes aos nossos e com instrumental adequado para mover as águas. Uns ocupam-se de deixar entrada livre aos grandes peixes que vêm do oceano Atlântico para ali desovar e se reproduzir. O ofício dos outros é fomentar o crescimento da fauna do próprio Pantanal“.

Então ele chega nos Sulinos, ao redor do Rio da Prata. Ele se surpreende com robôs, não mais humanos, criando gados e ovelhas na região que hoje seria o norte da Argentina e parte do Rio Grande do Sul. Também fala particularmente dos uruguaios, discretos plantadores de um “cogumelo negro, suculento e de cheiro insuportavelmente bom”, que tomou o lugar do gado nos campos da Banda Oriental. “Os uruguaios mesmo mal se deixarm ver, e nossa curiosidade era enorme. Eles são os únicos homens que ousaram moldar a figura humana. Quando toda a gente deixou de fumar cigarros, depois de quinhentos anos fumando gostosamente, os uruguaios substituíram os cigarros de tabaco por novas formas de cigarro, que são alimentícias e tem muita vitamina. Fumando-os através dos séculos, alargaram enormemente seus peitos e afinaram a cintura. Isso porque passaram a usar o pulmão como a melhor forma de alimentar, porque põe fumaças substanciais diretamente em contato com o sangue, que as absorve incontinenti. Os intestinos, dado o pouco uso, se reduziram a tripinhas“.

Darcy com sua nave passa também por Rio, Bahia e Brasília, capital de Ivy-Marãen, templo da Universidade do Mundo, centro de energia solar, a mais pura que existe. “Hoje, os campos energéticos de Brasília substituem o que eram as explorações de carvão e de petróleo”, já extintos em 2997, diz o texto, que segue expressando que o que mais agradou na capital foi a visita ao Templo Maior de Brasília, “que funciona como o núcleo principal de controle do Lexomundo, que emite o saber humano para toda a terra. Funciona hoje como um enlace de qualquer pessoa, de qualquer parte, que queira construir-se como um sábio. Quem o quer comunica-se por aparelhos ou por comunicação mental – se desenvolveu bem seus talentos para conectar-se e pedir orientação. É bem atendido e posto em contato com as pessoas mais capazes de ajudá-lo no seu campo de formação. Escolhido o mestre e aceito como aluno, o estudante da Universidade Virtual passa a trabalhar com toda uma massa de informações que recebe e na realização de programas de observação direta e expressão escrita da realidade, bem como no treinamento sistemático para pesquisas científicas“.

Ao final, Darcy Ribeiro começa a falar de como a civilização tropical dos “ivynos” é avançada tecnologicamente, com tecnologia de ponta e também valorização de toda a sua rica herança histórica e humana. De como eles também tem um sistema digital de conhecimento livre e de participação política – democracia direta, alguns diriam – onde todos os “ivynos” podem participar, seja nas questões de seu bairro como nas questões globais, tal qual um orçamento participativo. “O mais espantoso para nós e para nossos acompanhantes cibernéticos na vista a Ivy-Marãen é a completa integração de seu povo. Falando a mesma língua, oriunda do mesmo tronco, e cada vez mais parecidos uns com os outros, isso apesar da enorme variedade de gentes que havia ali ali antes do invasor europeu chegar, e dos constrates daqueles que vieram depois. Como tanta gente tão variada pode fundir-se racial, cultural e espiritualmente? (…) Seria acaso o próprio sofrimento secular de gente avassalada e escravizada que lhes dá esse sentimento de necessidade de vida?“.

Outro espanto, comenta o texto, é a modernidade dessa civilização tropical, “assentada na ciência mais avançada e na tecnologia de ponta, mas capaz de valorizar profundamente toda nossa herança humanística. “Eles formam hoje, em 2997, um corpo de dois bilhões de gentes, uma das parcelas maiores da humanidade. Nela totalmente incorporada, orgulhosa tanto de sua singularidade como de sua capacidade de convivência alegre com todos os homens da Terra”(…) A modernidade de Ivy-Marãen se expressa e se vê por toda parte de muitos modos, principalmente na sua capacidade e gozo de comunicação com o mundo. Diante deles quaquer ser humano merece respeito como ser único, que vale a pena conhecer e ouvir“.

Ao final do texto, o Darcy Ribeiro perosnagem do texto aponta que o que mais o espantou em Ivy-Marãen foi a negação de todas as mulheres a casar-se. Em tempos como os nossos, a imagem de uma utopia ciberfeminista traz um raro acalento imagético de futuro: “Só aceitam integrar a comunidade a que chamam casamento bororo. Ele consiste em viverem juntas vida autônoma, num casarão, as mulheres de várias gerações que integram aquela comunidade. Lá recebem seus maridos e têm filhos, que pertencem totalmente a elas e crescem todos juntos, aos cuidados daquele enorme mulherio. Para os filhos, o pai não é mais que um namorado eventual da mãe, que ela pode mandar embora para a comunidade dele e arranjar outro na hora que queira. O importante, para as crianças, é o tio materno, que está sempre por ali, conversando com eles e participando ativamente da vida comunitária. Essa família esdrúxula, que nem é família, surgiu do fracionamento da antiga família nuclear, quase sempre fracassada, em que os avós se convertem em sogros insuportáveis e as crianças eram de fato entreguem a creches. O casamento bororo superou todas essas dificuldades e floresce belamente, com mulheres namoradeiras e felizes crescendo contentes”.

 

 

 

Hora de resistência e ida às bases

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Depois dessas eleições e da eleição da nulidade Jair Bolsonaro à Presidência, é hora de resistência, ir para as bases e, por mais paradoxal que seja, acreditar no que ainda resta de legalidade. Deixo duas boas análises:

_ Um panorama importante e realista sobre 3 caminhos possíveis para um governo Bolsonaro: presidencialismo de coalização, “legalidade autoritária” (na prática: ditadura) e um governo errante, violento e curto, no JOTA;

_ Rosana Pinheiro-Machado no The Intercept Brasil:
“Estudando o fenômeno do bolsonarismo e observando de perto a imensa esperança depositada em sua figura por uma parcela do precariado brasileiro, estou convicta que a insatisfação popular virá muito em breve. Diante desse cenário, o risco de radicalização do seu governo (uma espécie de novo AI-5, o ato mais duro da ditadura militar em perseguição de críticos ao regime) é enorme. Isso porque Bolsonaro terá que apontar culpados, inimigos internos e bodes expiatórios para justificar seu desastre”.

Antes de jogar a toalha e partir pra um exílio (quem pode), convém fincar os dois pés aqui para reivindicar cada resquício democrático que foi conquistado. Para evitar a radicalização num governo Bolso, importante 1) criar uma barreira de contenção que force o funcionamento das instituições por meio de movimento democrático que inclua ativistas, juristas, intelectuais, professores, jornalistas, artistas. Segundo: “refundar os valores da esquerda, aprendendo alguma lição da vitória de Bolsonaro: existe uma carência profunda em uma identificação nacional, uma demanda por resgatar na política os valores de trabalho, comunidade e família, um apelo por uma vida segura e menos precária.”

“Refundar a esquerda só será feito no momento em que nos damos conta de que, apesar de estarmos convictos de que a população errou na sua escolha, algumas de suas frustrações sobre segurança pública e corrupção, por exemplo, eram legítimas. Nós temos uma possibilidade de nos reinventarmos se aprendermos a ler a frustração popular que elegeu Bolsonaro.”

Foto: Dário Oliveira/Folhapress

LabicAR, outubro de 2018

12 de outubro

Gentes diversas, lindas e con ganas de luchar da ibero-america inteira estiveram entre 10 e 21 de outubro trabalhando em 10 proyectos en #Labicar, laboratórios de inovação cidadã promovido pela Innovación Ciudadana junto ao Santalab, em Rosário (Argentina). Na beira do grande rio Paraná, uma lufada forte de esperança na colaboração e en la construcción de nuevas formas de vivir y colaborar (esto es hacer política tambien, no?) enquanto las viejas formas reacionárias ameaçam retornar para nuestro Brasil sem memória. Feliz de estar aqui colaborando e (in) tentando construir formas de resisténcia ciudadana.

(escrito propositadamente en portuñol selvage, la lengua no oficial del evento – y del futuro)

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22 de outubro

Quem me conhece faz algum tempo sabe que latino-américa sempre foi meu sul. Não que exclua aquilo que vem do norte ou vá de um latino-americanismo ingênuo a achar que toda a maldade pra nós vem dos EUA e da Europa (e muita vem mesmo, mas não é o caso agora). O mundo não é tão binário e nem há tanta clareza entre “bons e maus” para fazer divisões fechadas.
Mas o fato é que nós, latino-americanos, ainda nos conhecemos muito pouco. Olhemos para os lados: quanto estudamos da história dos países que nos cercam nas escolas? quantas artistas, escritoras, políticos ou historiadores do nosso continente conhecemos na nossa adolescência? Há todo um potencial de referências, afetos, semelhanças e diferenças que, quando se encontram, se friccionam de uma forma que essas questões sempre me vêem à tona, com um tanto de lamento (pelo nosso cruel destino-colônia) e outro de euforia (somos muito/as, e potentes demais para ficarmos longe).

Para mim, o #labicar, terminado sábado passado em Rosário, foi mais uma confirmação desse sentimento. Quase 100 pessoas muito interessantes e diferentes de vários países da ibero-américa juntas durante 10 dias trabalhando com inovação (tecnológica, cidadã, cultural) geram um encontro muito muito forte de risadas, ideias criativas, afetos, festas, discussões apaixonadas, organização lógica-hacker, formação de redes. É um reconhecimento de diferenças e semelhanças que nos faz continuar os caminhos meio tortos que rompem tratados, traem os ritos, gritam, desabafam e nunca se dão por vencidos, como disseram João Ricardo e Paulinho Mendonça na sempre linda “Sangue Latino” (e a preocupação e o apoio genuíno que nós brasileiros recebemos contra a ameaça de anos de retrocesso com Bolsonaro é só uma dessas várias irmandades latino-americanos que nos acalentam).

Gracias a Santalab, Innovación Ciudadana y a toda la gente que proporcionó este encuentro tan tan potente. A pesar de toda la mierda que estamos en Brasil, hay que seguir: precisamos seguir, vamos seguir. Resistir siempre ha sido con nosotres.
As fotos abaixo foram tiradas durante o evento; algumas delas são das ações da nossa equipe MercadoJusto.com.ar, um “marketplace” de produtos de comércio justo que prototipamos durante os 10 dias do evento. Entrevistamos produtores locais, pensamos em modelo de negócio e fizemos um videozito para a apresentação final do projeto no Teatro.

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Parte da equipe e o garoto-propaganda feliz com sua camiseta LabicAR

 

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Em uma feira de produtos artesanais e agroecológicos de Rosário, entrevistando produtoras de cosméticos naturais

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Equipo completa. Em sentido horário, Peru, México, Brasil, Argentina e Equador

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Apresentação final do projeto no Teatro Príncipe de Astúrias, no Parque España, em Rosário

Cultura hacker e jornalismo II

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Registro tosco de mais uma turma da pós em Especialização em Jornalismo Digital  da PUCRS que tenho o prazer de dar aula de “Cultura Hacker e Jornalismo”, disciplina criada especialmente pra essa pós e provavelmente a única da latino-américa focada nesse tema. O tempo é pouco, e também não se “ensina” a ser hacker, mas deu pra fazer um bot de telegram, um site e falar bastante de privacidade, criptografia & táticas antivigilância na rede. Gracias alunxs!

p.s: a foto mostra uma mensagem escrita a mão “Bem vindxs, hackers” – sim, sou desses que às vezes escrevo no quadro – e o pad com as referências da disciplina está aqui. O material-guia das aulas pode ser acessado na aba “Aulas” desse site.

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Vitório

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Duas semanas atrás Vitório Uberti, avô da Sheila (minha compnaheira), fez 90 anos. Gosto de ouvir histórias e Vitório gosta de contar; fechamos uma boa dupla desde que nos conhecemos. Homem simples de origem italiana, Vitório sempre teve uma vida “comum” no interior do RS, trabalhador que saiu do campo pobre para buscar trabalho na cidade, onde se achou na área de mecânica de carros e equipamentos diversos e com isso construiu sua família e sua casa, em Bento Gonçalves. A riqueza de detalhes e da construção narrativa que ele adquiriu de episódios que outros achariam banais é o que fazem dele um excelente contador de causos. Conheci mundos e redescobri outros do interior ouvindo as histórias dele; aprendi muito sobre mecânica, geografia, história, carros e sobre o valor de pequenas coisas como uma música tocada no rádio, amizades fiéis, uma ressaca bem vivida – perdoem o clichê, mas felicidade é construída dessas pequenas coisas.

Segunda-feira 20/8 à noite Vitório morreu. Sempre difícil buscar palavras para dar conta desse mistério tão grande que sempre será a morte, mas lembrei do presente que eu e Sheila damos a ele nos 90: um zine com uma de suas muitas histórias. Chamamos de “Causos do Vitório” e distribuímos como lembrança a todxs os presentes na festa. O texto abaixo é uma pequena biografia que está na publicação, na foto localizado na mala com outros presentes e lembranças de Vitório; a segunda foto foi quando mostrei a ele o zine, agora sei que uma de suas últimas leituras, ele que nos últimos anos lia muito, livros, revistas, jornais, tudo que caía em suas mãos.

“Vitório Uberti nasceu em 9 de agosto de 1928 no interior de Viadutos, pequena cidade ao norte do Estado às margens do rio Uruguai, na divisa do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Saiu de casa aos 18 anos e passou a trabalhar por décadas com mecânica de diversos equipamentos, especialmente máquinas e tratores utilizados na construção de estradas. Trabalhou em cidades como Montenegro, Porto Alegre, Novo Hamburgo, Rio Pardo, Nova Prata, Campos Novos e em acampamentos temporários criados na construção de estradas, como a que liga Santa Cruz do Sul a Rio Pardo (RS)e a Br 116, no trecho chamado Rio-Bahia. É apaixonado por carros e mecânica; teve quatro dessas paixões em forma de carro: uma “Fubica” Chevrolet 32, uma DKW, um Corcel I e um Voyage. Foi morar em Bento Gonçalves em 1979 e ali construiu sua casa, localizada no bairro São Francisco, onde vive até hoje com sua companheira, Angelina De Bona Uberti, de 84 anos. Vitório cumpriu poucos anos de estudos formais, mas tem experiência e habilidade com tanto tipo de trabalho lógico e manual que deixa muito “doutor” formado em universidades no chinelo, como comenta sua neta Sheila Uberti: “Me ensinou e incentivou a usar as ferramentas da oficina, a trabalhar com madeira, com fiação, a pensar em soluções para restaurar cabo de panela e a fazer esquema de iluminação – só pra listar por alto. Do it yourself muito bem feito, se assim quiserem chamar.” Acompanha diariamente o noticiário na rádio e no jornal, lê livros e revistas com frequência e é um contador de causos de mão cheia – lembra de muitas passagens de sua vida em detalhes e é uma ótima parceria para quem gosta de ouvir histórias por horas. Esta publicação nasceu em homenagem aos 90 anos de Vitório.”

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A Colaboradora

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Estive em Santos em maio de 2018 para acompanhar a imersão de inauguração da Colaboradora, projeto experimental inspirado na La Colaboradora de Zaragoza, na Espanha, mas com todas as diferenças possíveis que um projeto com 14 artistas e produtores culturais, em vez de empreendedores criativos como na Espanha, num território rico e complexo como esse pode ter. A facilitação nesse processo feita pelo trio Etinerâncias foi coisa linda de se ver e sentir, trazendo o corpo, os sentimentos e a brincadeira para jogar no espaço a ser criado (o que é uma colaboradora? um espaço de colaboração artística e cultural com pelo menos 10 meses de duração, e o que mais?), no território ao redor a ser experimentado e no interior de egos complexos como costumam ser o de gente que se expressa enquanto artista no mundo.

No primeiro relato da documentação, tentei trazer um pouco do que foram os três dias de imersão inicial do projeto, com destaque para o território onde o lab e a Colaboradora se situa, a Bacia do Mercado. Um trecho: “Ao final da tarde do último dia de imersão, seguimos todxs para o espaço em frente ao Mercado Municipal onde ocorre o embarque e o desembarque dos pequenos barcos de madeira chamados catraia. São esses barcos, espécie de canoas maiores e motorizadas que levam até 20 pessoas sentadas, a forma mais rápida de acesso entre Santos e Vicente de Carvalho, distrito de 130 mil habitantes que pertence à cidade de Guarujá. O trajeto de 800 m é feito por pequenos barqueiros que atracam em frente ao Mercado; cobram R$1,50 para a travessia, que percorre em 10 minutos o Estuário de Santos, onde os enormes navios que chegam ao porto atracam, até chegar em Vicente de Carvalho. Para pegar o estuário, as catraias tomam um pequeno canal que passa embaixo de avenidas e armazéns das Docas do porto. Nesse dia, a maré alta fez com que o espaço entre as águas do canal, em baixo, e as ruas e armazéns, em cima, fosse menor que o usual. Os mais altos tiveram que se abaixar para não baterem no concreto enquanto o barco deslizava em direção ao estuário.”

Depois, fiz algo que, enquanto jornalista bissexto, não fazia há muito tempo: perfis. Tinha até me esquecido do quanto é bom ouvir pessoas interessantes e buscar traduzir em palavras suas histórias de um modo mais preciso, correto e sensível possível. Sem o relógio diário da “atualização contínua” a martelar, torna-se um trabalho prazeroso e artesanal, ainda que não ter cobrança diária não signifique não ter prazo, o que sabemos ser a causa mortis de muitos projetos, ideias e pesquisas.

Fiz 13 perfis dos integrantes da Colaboradora. Conheci melhor Santos e a Baixada Santista a partir de cada história dos artistas e produtores culturais participantes. As agruras de se readaptar ao seu país de origem, de sobreviver fazendo arte enquanto outros afazeres do status quo são mais fáceis de pagar as contas, de ser mulher negra e fora dos padrões de beleza, de sair (ou fugir) da casa dos pais para tentar a vida como artista, de fazer arte, dar aulas e cuidar dos filhos pequenos, de se descobrir artista/produtor depois de anos em outras carreiras; tem um pouco de tudo isso nos perfis. Todos eles podem ser vistos aqui.

“Eu não sou um Homem fácil”

Essa semana assisti “Eu não sou um Homem Fácil” (“Je ne suis pas un homme facile”), primeiro filme francês produzido pelo Netflix e dirigido pela tb francesa Eléonore Pourriat. A história traz um protagonista, machão conquistador clássico, que bate a cabeça e acorda em um mundo onde as mulheres e os homens têm seus papéis invertidos na sociedade, e tudo é dominado por mulheres. Somos nós que andamos de roupas curtas preocupados com os olhares e as ações delas nas ruas; são elas que fazem coisas ditas viris, como cortar carnes num açougue, enquanto o homem fica no caixa; somos nós os responsáveis pelos cuidados da casa, enquanto que elas ocupam os cargos de chefia nos trabalhos; entre outras inúmeras situações que a 1h38min do filme permite.

Apesar dos clichês e das simplificações por vezes excessivas típicas de uma comédia para a massa, é um filme muito interessante. Ao virar o olhar patriarcal de cabeça para baixo revertendo os papéis, nos faz refletir sobre o machismo nosso de cada dia absorvido desde a infância e endossado de todos os lados (trabalho, relações, amizades, famílias, esportes, etc). Nos faz perceber ainda mais como o machismo é uma prisão que dificulta a expressão de nossos sentimentos e, em muitos casos, não nos permite ser o que gostaríamos de ser porque “isso não é coisa de homem”. Uma prisão que, como é sabido, causa muitos males às mulheres, mas também a nós homens, que crescemos analfabetos emocionais e não raro pessoas mimadas sem nenhuma responsabilidade nem cuidado conosco, que dirá com outras pessoas.

Fica a dica, em especial para outros homens: relevem os clichês e as simplificações, assistam o filme, entrem na narrativa vendo a sociedade de outra perspectiva – e discutam sobre isso depois. Tá no Netflix e se encontra fácil para baixar (é de abril deste ano).

 

 

Cambalache

camblache

Quem me conhece sabe que gosto de tango – como de jazz, milonga, afrobeat entre muitas outras coisas que não cabe aqui listar. Quem me conhece de mais perto sabe que “Cambalache“, escrito em 1934 por Enrique Santos Discépolo (imagem acima), é um dos meus tangos favoritos, por motivos que nunca sabemos explicar bem quando se trata de sentir, mas vou tentar organizar algumas impressões aqui sobre ela.

Escutei pela primeira vez a música na faculdade, quando estagiava num programa semanal na TV da universidade em que estudava. O programa era sobre psicologia e tinha a participação de dois professores-psicólogos da universidade e um aluno deles, no formato mais utilizado pela TV na época: todxs sentados numa bancada conversando sobre alguma tema – no caso, psicologia. Eu trabalhava na produção, preparando toda semana um vídeo de uns 3 minutos com diversas cenas de filmes que dialogavam com o tema escolhido. Locava os filmes (em fita) indicados pelo pessoal, selecionava os trechos e editava numa mesa de edição linear, um processo que nem consigo imaginar o quão mais fácil é hoje do que naqueles inícios de anos 2000.

Um dos últimos programas que editei foi o de despedida de um dos professores-psicólogos da universidade. Ele havia se aposentado e já estava de mudança para a Argentina, seu país de origem. Preparamos com toda a equipe uma edição especial e a mim calhou de fazer o que sempre fazia, o vídeo temático. Fui conversar com o professor argentino sobre o que ele queria ver/ouvir no programa, já que o tema era ele. Lembro de ambos estarmos sentados na sala de edição da universidade, com aqueles vários monitores e botões típicos da época, quando perguntei a ele: “qual a música que você quer escutar no programa?”. Foi então que ele me falou de “Cambalache”, disse que era a sua música favorita, comentou de como a letra composta no início do século passado ainda era perfeitamente atual no início desse século XXI.

Não lembro de como consegui a música, não existia Youtube e baixar sons “velhos” como “Cambalache” não era algo tão fácil à época. Mas sei que tocou no programa de despedida, ao final da edição, e continuou soando com os créditos finais. O professor depois me abraçou, agradeceu com os olhos marejados, e desde então eu nunca mais esqueci a música. Ouvi ela em diversas outra vezes, tanto na sua versão clássica com Julio Sosa, de 1955, quanto nas versões brasileiras de Caetano Veloso (de 1969, respeitosa e ótima interpretação) como na de Raul Seixas, que traduziu e deu um tom rock pra versão (de 1987; não gosto muito). Até mesmo em tempos de Netflix ela aparece: no 2º episódio da 2º temporada da série “Narcos”, Wagner Moura (ou Pablo Escobar) canta “Cambalache” no chuveiro enquanto seus capangas invadem um prostíbulo e matam várias pessoas, naquelas raras combinações de música, interpretação e imagem que, apesar da crueldade, nos dão um certo arrepio de emoção.

“Cambalache” é um tango extremamente popular, mas diferente da maioria que você ouve com frequência, não fala de amores, noite, corridas de cavalo nem bebida: fala de política. É uma reclamação repleta de citações e ironias sobre um mundo que não é mais o que era – na época, o século XX se iniciava e Discépolo, nascido nem 1901, usava com maestria as palavras para tecer uma crítica social contundente a certas práticas da época (ainda comum hoje, e que provavelmente serão por muitos séculos). Em 2018, o tom algo moralista da canção pode até ser apropriado por defensores brasileiros verde-amarelos “da moral e dos bons costumes”, que podem interpretar a música como uma crítica à tudo que cheira a política, mesmo que a letra genial permite vários outros pontos de vista – inclusive o de ir contra o poder estabelecido, perspectiva esta que gosto mais.

Sobre o professor, nunca mais vi. Soube que ainda está vivo e ativo, na Argentina.

Que el mundo fue y será una porquería
ya lo sé…
(¡En el quinientos seis
y en el dos mil también!).
Que siempre ha habido chorros,
maquiavelos y estafaos,
contentos y amargaos,
valores y dublé…
Pero que el siglo veinte
es un despliegue
de maldá insolente,
ya no hay quien lo niegue.
Vivimos revolcaos
en un merengue
y en un mismo lodo
todos manoseaos…

¡Hoy resulta que es lo mismo
ser derecho que traidor!…
¡Ignorante, sabio o chorro,
generoso o estafador!
¡Todo es igual!
¡Nada es mejor!
¡Lo mismo un burro
que un gran profesor!
No hay aplazaos
ni escalafón,
los inmorales
nos han igualao.
Si uno vive en la impostura
y otro roba en su ambición,
¡da lo mismo que sea cura,
colchonero, rey de bastos,
caradura o polizón!…

¡Qué falta de respeto, qué atropello
a la razón!
¡Cualquiera es un señor!
¡Cualquiera es un ladrón!
Mezclao con Stavisky va Don Bosco
y “La Mignón”,
Don Chicho y Napoleón,
Carnera y San Martín…
Igual que en la vidriera irrespetuosa
de los cambalaches
se ha mezclao la vida,
y herida por un sable sin remaches
ves llorar la Biblia
contra un calefón…

¡Siglo veinte, cambalache
problemático y febril!…
El que no llora no mama
y el que no afana es un gil!
¡Dale nomás!
¡Dale que va!
¡Que allá en el horno
nos vamo a encontrar!
¡No pienses más,
sentate a un lao,
que a nadie importa
si naciste honrao!
Es lo mismo el que labura
noche y día como un buey,
que el que vive de los otros,
que el que mata, que el que cura
o está fuera de la ley…

está fuera de la ley.