Diário da tese (16): até onde ir?

fractaismandelbrot_set

Uma das primeiras coisas que nos ensinam numa aula de metodologia na universidade é de que precisamos “recortar” nosso referencial teórico, metodologia, objetivos, hipóteses. Se quero estudar comunicação digital, por exemplo, não preciso necessariamente fazer uma revisão bibliográfica que vá ao início da comunicação humana, dos computadores e da internet. Se quero investigar um sistema de publicação online de um jornal, não posso entrevistar os seus criadores, os usuários, fazer uma etnografia na redação para acompanhar como ele é usado E ainda fazer uma análise do discurso dos textos “de ajuda” inseridos no software e uma análise de conteúdo com todas as postagens já publicadas pelo sistema. Ou, no caso de uma pesquisa empírica, se vou estudar a transmissão online “ao vivo” de acontecimentos do tempo presente na Mídia Ninja – para ficar no caso específico de uma parte da tese – não necessito estudar toda a história da transmissão “ao vivo” na comunicação para isso.

A questão é: será que não mesmo? Até onde devemos ir na hora de embasar nosso trabalho conceitualmente, propor nossos objetivos, escolher nossos objetos de pesquisa ou definir nossa metodologia? Uma resposta simples seria: até onde conseguirmos. Questão de tempo: na maioria das situações de pesquisa (ou seriam todas?), não podemos ficar o tempo necessário para uma investigação profunda. Não terminamos um trabalho científico, nos livramos dele em algum momento, em especial quando o prazo (e as bolsas) dizem que devemos entregar…

No caso específico de uma investigação guiada por uma perspectiva ator-rede, a operação pela qual o mundo social e o natural tomam forma é compartilhada por diversos atores, que mobilizam outros para seus cursos de ação, e outros, e assim indefinidamente: quanto mais olhamos de perto essa operação mais veremos atores agindo e fazendo outros agirem e produzindo diferenças. É uma situação parecida com o fractal* de Mandelbrot na ilustração que abre esse post. O “objeto mais complicado da matemática“, segundo alguns, é, como um ator numa rede, algo aparentemente muito simples: digitalmente, 6 toques num teclado são necessários para produzir um.  Mas mergulhos sucessivos em sua estrutura revelam uma complexidade crescente: detalhes aparecem cada vez que você aproximar a imagem. Se você der um zoom, as formas mudam, aparecem regiões dos fractais que lembram animais específicos, mais zoom e um ponto aparentemente negro sem detalhes ganha mais milhares de detalhes, que lembram a estrutura inicial, e assim sucessivamente, numa vertigem sem fim.

Como trabalhamos com textos e não cálculos matemáticos, nos debruçar sobre todos os atores, ou sobre muitos atores, levaria mais tempo e se estenderia por mais espaço que um ser humano dentro de uma universidade poderia ter – nesse aspecto, a matemática é mais rápida: com cálculos, muita coisa que nem conseguimos imaginar, que dirá escrever, pode ser prevista! Por conta disso, temos de fazer recortes, descrever aqueles atores que, ao longo da operação de tradução de uma coisa em outra, produzem mais diferença, ou que produzem outras ações que são significativas para uma dada investigação. Como diz Bruno Latour em Reagregando o Social, “Um bom relato ANT é uma narrativa, uma descrição ou uma proposição na qual todos os atores fazem alguma coisa e não ficam apenas observando. Em vez de simplesmente transportar efeitos sem transformá-los, cada um dos pontos no texto pode se tornar uma encruzilhada, um evento ou a origem de uma nova translação” (LATOUR, 2012, p.198).

Emma Hemmingway, em Into the Newsroom (2008, p. 73) afirma que para tentar definir o limite da rede em que os atores agem, muitas vezes se faz necessário seguir um ator para trás, para identificar onde ele se tornou significativo para essa rede e, só então, traçar o processo de tradução que tem sido feito até ali. Mas como definir onde determinado ator foi significativo em algum momento? Onde ele começou a fazer diferença seria uma boa resposta, embora não seja tão fácil quanto parece determinar onde e quando exatamente isso acontece…

No vocabulário da TAR, a diferenciação entre mediadores e intermediários tenta dar conta dessa dificuldade. É uma definição que nos ajuda a entender o que está importando em dado momento e que, por conta disso, devem constar no relato do investigador. Os mediadores são aqueles que transportam algo, produzem ação e alteram o curso das coisas, enquanto os intermediários até transportam, mas não mudam nada – ou não deixam prova de que mudaram algo, ou deixam provas que não conseguimos rastreá-las a ponto de trazermos para a investigação. São os mediadores, é claro, que almejamos descrever numa pesquisa científica, de forma a fazer com que todos aqueles que trazemos no relato científico façam alguma coisa e não fiquem no lugar de outros que não fazem (LATOUR, 2012, p.222). A pergunta, então, que está no título desse post pode ser refeita: até onde devemos ir na hora de escrever uma investigação científica? Questão para a próxima postagem.

*No ótimo perfil que João Moreira Salles faz de Mandelbrot na Revista Piauí, é narrado assim o momento em que o francês precisava dar um nome as “formas selvagens” que tinha descoberto. “Uma tarde, em 1975, seu filho chegara da escola e fazia o dever de casa com um dicionário de latim à mão. Folheando o livro, Mandelbrot caiu no arquivo fractus, do verbo frangere, “quebrar”, “fraturar”. Havia achado a palavra adequada: fractal.
Outro trecho é bem exemplar da importância da descoberta “Mandelbrot observou que formas irregulares – o litoral, por exemplo – tinham uma característica singular: sua complexidade não se alterava com a escala. O homem percebia certos recortes, o réptil percebia outros mais e outros ainda o inseto. Mas não era só isso: independentemente da escala, a forma percebida se mantinha substancialmente a mesma, como se cada segmento repetisse o todo. Essa característica – a autossemelhança – é o centro da geometria criada por Mandelbrot. O mínimo se parece com o imenso. Uma pequena nuvem é semelhante a uma nuvem grande e ambas obedecem a um princípio organizador único. A natureza está repleta de formas assim, cheias de reentrâncias, segmentos retorcidos, entrelaçados, irredutíveis à suavidade das formas puras. O salto que ele deu foi afirmar que essa é a verdadeira geometria do mundo natural. As irregularidades não são deformações da perfeição clássica, mas o idioma próprio da natureza.

Imagem daqui.

Diário da tese (11): Depois do método

mess

Em 1974, o austríaco Paul Feyerabend estava cansado: era professor convidado na Universidade de Sussex, em Brighton, na Inglaterra, trabalhando 12 horas por semana e não dava mais conta de ensinar. Tendo lutado no Exército Nazista alemão da Segunda Guerra Mundial (atingido por uma bala, viveria desde então de muletas), estudado com Karl Popper em Londres e estado professor de filosofia na Universidade de Berkeley, na Califórnia, Feyerabend havia trabalhado nos últimos anos em um texto junto de seu amigo Imre Lakatos, matemático e professor na London School of Economics, sobre “anarquismo metodológico”. O livro consistiria de duas partes: a primeira, a cargo do austríaco, traria uma crítica a posição racionalista na ciência: Lakatos, por sua vez, reformularia essa posição para defendê-la e rebater os argumentos de Feyerabend. Juntas, as duas partes deviam retratar os longos debates dos dois em torno desse tema — que tiveram início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefônicas, artigos, e só tiveram fim com a morte repentina de Lakatos, em 2 de fevereiro de 1974.

Como homenagem ao colega, Paul Feyerabend resolveu publicar o livro assim mesmo, só com uma parte, e assim nasceu Contra o Método (1975), um manifesto contra o método científico racionalista que recorre a psicologia, sociologia e história da ciência para se perguntar: será que é desejável apoiarmos uma tradição que se mantém una e intacta, através de regras restritas, e ainda concedê-la direitos excusivos sobre a manipulação do conhecimento sobre as demais? A resposta dele é taxativa: “um firme e vibrante NÃO” (p.24).

30 anos depois, John Law, um dos pesquisadores mais diretamente ligado à TAR, escreve um livro inteiro que, embora não aborde diretamente as referências do austríaco, tem um mesmo objetivo: discutir o método científico da tradição Euro-Americana. O argumento central de After Method: mess in social science research traz a ideia de que os modos de inquirir acadêmicos não captam as texturas confusas do mundo tal como elas se apresentam. Partes do mundo são capturados nas etnografias, histórias e estatísticas, mas outras partes não. Ele então se pergunta: “If much of the world is vague, diffuse or unspecific, slippery, emotional, ephemeral, elusive or indistinct, changes like a kaleidoscope, or doesn’t really have much of a pattern at all, then where does this leave social science? How might we catch some of the realities we are currently missing? Can we know them well? Should we know them? Is ‘knowing’ the metaphor that we need? And if it isn’t, then how might we relate to them?” (p.2)

Law não tem uma única resposta para estas questões, mas uma certeza: se queremos pensar sobre a bagunça (mess) da realidade, então nós vamos ter de nos ensinar a pensar, praticar, relatar e conhecer de novas maneiras, não apenas do jeito que nos ensinaram nas aulas de metodologia. After Method é, então, um livro que sustenta um modo de pensar sobre o método que é mais amplo, solto e devagar, que afirma que os métodos, suas regras e práticas metodológicas não apenas descrevem a realidade como também ajudam a produzir a realidade que estão compreendendo (p.5). O método – como a tecnologia, os objetos – jamais é inocente ou somente técnico, e, diferente do que a tradição metafísica racionalista Euro-Americana de estudos científicos ensina, ele não é apenas um meio para o fim de conhecer melhor algo.

Para descrever sua proposta, Law traz diversos estudos e situações na história da ciência e tecnologia. No capítulo dois, ele vai ao livro de Bruno Latour e Steve Woolgar, A vida no Laboratório: a produção dos fatos científicos, publicado em 1979, e ver, “sob os ombros dos etnógrafos da ciência”, como cientistas e outros produzem conhecimento na prática. Com Latour e Woolgar, Law introduz sua não-proposta de método a partir da ideia de assemblage, oriunda da filosofia de Giles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs (1980): “a process of bundling, of assembling, or better of recursive self-assembling in which the elements put together are not fixed in shape, do not belong to a larger pre-given list but are constructed at least in part as they are entangled together” (LAW, 2004, p.42). A ideia de assemblage recusa fórmulas fixas que definam a priori o que é bom ou ruim como método e determina que este ocorra como um processo contínuo de elaborar e performar (enact) os limites necessários entre presença, ausência e alteridade.

O método assemblage também pode ser entendido como ressonância que cria e detecta periodicidades e padrões no fluxo das coisas (p.143). Mas que padrões e periodicidades ele estabelece e quais nega? Com a perspectiva de não trazer respostas generalistas e nem partir de relações assimétricas em sua busca, o método assemblage pode percorrer os desvios e a indecisão das múltiplas realidades e delas captar questões que mantém estabilidades temporárias que podem ajudar a performar outras estabilizações temporárias, e assim indefinidamente. Se, como diz Law, a metafísica Euro-Americana se compromete com a estabilidade e a precisão de suas investigações, mesmo que ao custo de posições tomadas a priori do observador e da aparente universalidade de suas afirmações, esta metafísica alternativa proposta por Law em After Method quer incluir a inconstância de modos alegóricos, ambíguos, pouco tácitos, na hora de construir métodos heterogêneos que performem uma dada realidade mais do que a tentem representar.

Law encerra o livro sugerindo que as afirmações metafísicas que o método científico tradicional Euro-Americano propõe devem ser erodidas. Mas de que forma prática fazer isso? Quais os métodos alternativos que são lentos, incertos, que dediquem atenção ao processo e consigam capturar as múltiplas realidades performadas de maneira mais heterogênea? A resposta, é claro, é que não há uma única resposta – nem deve haver (p.151). Mas a capacidade de colocar as questões é tão importante como quaisquer respostas particulares que possam ser obtidas – no que Feyerabend, com sua radical e ainda atual provocação ao método trinta anos antes, talvez concordaria.

Baixe:

LAW, John. After Method: mess in social science research. New York: Routledge, 2004.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Tradução de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1977.

P.s1: After Law é um caminho sem volta de leitura, e como tal estará na tese que, nesse momento, anda lenta no segundo capítulo. A imagem de abertura é da introdução do livro, p.1.
Ps2: Agradeço a Fundação Ecarta e ao Léo Felipe pela aleatoriedade de cruzar meu caminho, na semana passada, com o catálogo da exposição “Um firme e Vibrante NÃO“, de 2015, onde Leo cita Feyerabend – e por conta disso é que surgiu a ideia de ligar Law e Feyerabend.