Diário da tese (15): descrever, descrever, descrever

twittcasting

Descrever é uma prática comum no jornalismo, nem tanto naquele que é produzido diariamente, mas sim naquele feito com tempo, cuidado e que passa por muitas mãos, seja na hora de mexer no texto (no vídeo, no áudio, em desenho, em site, ou em tudo isso misturado) ou a partir de fontes as mais diversas possíveis. Também é na antropologia, na escrita dos diários de campo etnográficos, em que os detalhes são importantes e a ação observada (e participada) é fundamental para se construir boas considerações teóricas. Não é raro de ver antropólogos com diários de centenas –  milhares! – de páginas de descrição profunda de detalhes para “transformar o exótico em familiar, ou o familiar em exótico”, como diz Roberto Da Matta em “O ofício do etnógrafo, ou como ter anthropological blues“ (1978), já citado por aqui.

E também é parte fundamental do trabalho que use a Teoria Ator-Rede como guia metodológico, como é o meu caso. Mas um trabalho de descrição de redes (de actantes, seres que agem, sejam eles objetos ou humanos), ao contrário do que talvez possa se imaginar, não é uma tarefa simples. Latour, em Reagregando o Social (2012, p.209) diz que a descrição completa, observar um estado de coisas concreto, descobrir o único relato adequado a uma situação, é uma tarefa muito desgastante: “o simples ato de registrar alguma coisa no papel já representa uma imensa transformação que requer tanta habilidade e artifício quanto pintar uma paisagem ou provocar uma complicada reação química (LATOUR, 2012, p.199)”.

Em diversos momentos, o caráter maçante de uma descrição pode nos fazer substituí-la por explicações trazidas por entidades vagas como “Sociedade, Capitalismo, Império, Normas, Individualismo, Campos”, o que faz com que o social escape pelas mãos. Como diz o pesquisador francês: “Ou as redes que tornam possível um estado de coisas são plenamente desdobradas – e, nesse caso, acrescentar uma explicação seria supérfluo – ou “acrescentamos uma explicação” declarando que outro ator ou fator deve ser levado em conta, de sorte que a descrição avance mais um passo. (LATOUR, 2012, p.200).

Trago a descrição pra este diário porque é justo neste processo de descrição do “estado das coisas” das redes de mediação na Mídia Ninja que me encontro neste momento. Ninguém disse que seria fácil, e não tá sendo: são páginas tentando buscar as melhores palavras para descrever como a Mídia Ninja chegou até a cobertura das manifestações de 2013, por exemplo. Muita coisa aconteceu entre 2006 e 2013 na rede que deu a sustentação à formação da Mídia Ninja, o Fora do Eixo, e a decisão de escolher o que foi importante (fez diferença) e o que não fez é sempre uma escolha difícil, ainda mais se tratando de uma rede que, por si só, já não é fácil de entender e tem um caminho muito distinto de redações jornalísticas mais tradicionais. Um caminho pra escolher o que está importando naquele dado momento analisado sempre parece ser as provas: se os atores não deixam provas que agem, ou deixam provas que não conseguimos rastrear de modo a compor um relato convincente dessas ações neste trabalho, então esse ator não vai estar na narrativa. A descrição não deixa de ser o resultado do rastreamento das associações entre actantes. Um trabalho de detetive. Ou de jornalista?

No caso da TAR, há ainda o fato de não separar os objetos dos sujeitos na hora da descrição. Então, se dado objeto está importando em dado momento, ele também vai ser descrito. Na prática, isso significa que você vai ter que descrever aspectos “técnicos” que demandam muita pesquisa para dominá-los a ponto de conseguir produzir uma boa narrativa. Um exemplo do trabalho que tenho feito: o twittcasting, software/aplicativo de streaming usado em junho de 2013 na Ninja. Os momentos de maior visibilidade do grupo se deram a partir de transmissões ao vivo do aplicativo usado a partir de um Iphone, uma prova suficiente de que ele agiu modificando outros atores e fazendo diferença. Mas como ele funciona? quem produziu? quais são os códigos que fizeram ele possibilitar a narrativa de uma dada realidade no que costumamos chamar de “ao vivo”? É necessário abrir esta caixa-preta para entender. E isso não é tarefa fácil para se fazer quando há outros outros atores que também esperam para ser descritos em detalhes.

Felizmente, há boas descrições em diversos relatos atores-rede. Tenho tentado ler alguns para me inspirar e ver melhor como posso construir a minha narrativa. Além dos já citados em outros posts, dois textos que são essenciais para a descrição de objetos técnicos estão abaixo, com seus respectivos arquivos em PDF; o último é indicação de William Araújo, colega doutorando e também um investigador ator-rede.

AKRICH, Madeleine.The De-scription of Techinical Objects. In: BIJKER, W. E., LAW, J. (Eds.).Shaping Technology/ Building Society. Studies in Sociotechnical Change. Cambridge: The MIT Press, 1992, p. 205-224.

CALLON, Michel. (2001). Writing and (Re)writing Devices as Tools for Managing Complexity. In J. Law and A. Mol (Eds.) Complexities in Science, Technology and Medicine. Durham, N. Ca., Duke University Press.

 

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