Começo o 2016 com a cabeça ainda nos comentários e retornos dos congressos e conversas que tive em novembro e dezembro de 2015, nas possíveis implicações que estes terão na tese e, ao mesmo tempo, com a preocupação de seguir em frente na pesquisa de campo, por isso este primeiro texto de 2016 vem só em fevereiro.
Como falei no post anterior, foram dois os eventos acadêmicos que participei: o II Congresso Internacional de Net-ativismo, em São Paulo, e a XI Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), em Montevideo. No primeiro apresentei um artigo que não trata diretamente do assunto da minha pesquisa, e sim de desdobramentos do que norteava o projeto com que entrei no doutorado – que tratava de jornalismo e a cultura hacker – com a discussão do conceito de mídia tática, muito difundido no Brasil na década de 2000 e próximo às minhas ações práticas no BaixaCultura (página que edito desde 2008) e na Casa da Cultura Digital em São Paulo.
A ideia do trabalho foi de resgatar o histórico do conceito, originária da leitura de Michel De Certeau em “A Invenção do Cotidiano” (1994) sobre as práticas e táticas criativas que a cultura popular produz com os artefatos e técnicas que a rodeiam, e que apareceu organizado como um conceito estruturado pela primeira vez com Geert Lovink e David Garcia no seminal “O ABC da Mídia Tática“, de 1997. É uma concepção teórica originária do contexto europeu pós queda do muro de Berlim e que se desenvolveu em festivais e redes de comunicação, tecnologia e ativismo no final da década de 1990 e início dos anos 2000 como “uma tentativa de identificação de uma tendência de convergência nos campos políticos e culturais desta época, influenciada pelo crescimento da produção midiática viabilizada por equipamentos baratos e de fácil utilização”, como diz Lovink no texto “Atualizando a mídia tática. Estratégias de midiativismo”, presente num dos capítulos do livro “Informação, Conhecimento e Poder: Mudança tecnológica e inovação social“, de 2011.
No artigo, identifiquei alguns exemplos da chamada “era de ouro” das mídias táticas, no final da década de 1990, como o flood net em apoio aos zapatistas, desenvolvido pelo Eletronic Disturbance Theater, uma estrutura ad hoc com os integrantes do coletivo Critical Art Ensemble (a ação está documentada neste link); o caso Dow Ethics, proposto pelo Yes Men, em que dois integrantes do coletivo aplicam um “trote” clássico na BBC britânica quando um deles se passa pelo executivo da empresa Dow Chemicals e concede uma entrevista ao vivo assumindo que vai pagar os custos do desastre químico promovido pela empresa causado na cidade indiana de Bhopal. Pro Brasil de 2016, seria como se um integrante de um coletivo de ativistas tivesse convencido a Globo de que era um executivo da Samarco, principal responsável pela tragédia em Bento Rodrigues – Mariana, e concedesse entrevista num programa como o Jornal da Globo assumindo que a empresa vai pagar uma indenização de bilhões de reais às famílias atingidas (o que, convenhamos, deveria ser o mínimo, não?). Fiz uma versão desta primeira parte do artigo neste post do BaixaCultura. Num segundo momento, trouxe um breve histórico da mídia tática no brasil, enfatizando a (re) apropriação feita a partir da gambiarra e uma aproximação com os princípios da ética hacker. Farei uma versão desse post pro BaixaCultura nas próximas semanas.
No segundo apresentei um artigo que discutia a mediação e os objetos técnicos na Mídia NINJA, a partir de alguns dados da primeira parte da observação participante que estou fazendo. [O arquivo em PDF que fiz para guiar a apresentação está aqui]. A proposta foi discutir, no GT de Simetria, Agência e Etnografia: Experiências de Pesquisas Sobre Relações entre Humanos e Não Humanos, qual a agência dos objetos na mediação jornalística da NINJA.
Foi um momento de muitos aprendizados sobre a prática da etnografia, área que os antropólogos criaram e dominam, e alguns retornos importantes sobre a pesquisa. Por exemplo: a ideia de levar menos pressupostos a campo e descrever aquilo que acontece, de forma direta, deixando para os atores definirem (se quiserem) aquilo que fazem – caso, por exemplo, de jornalismo ou ativismo – e não o pesquisador “explicar”, em 2º mão. Outra: campo é deslocamento, não só estar em um lugar “físico”, o que significa que o trabalho de campo pode ir além do espaço geográfico e percorrer as redes sociais e outros “lugares” da internet – aqui, a ideia da etnografia multi-situada entrou para ficar. Mais uma: não há resposta definitiva sobre se os atores são intermediários (que não “traduzem” nada) ou actantes (“que fazem outros fazerem coisas”) na mediação: essa resposta será temporária para um dado momento (o analisado), no curso da ação.
Todas ideias podem parecer óbvias para quem já está na antropologia há muito tempo, mas este não é caso aqui. A participação na RAM só reforçou, pra mim, o quanto faz bem transitarmos por áreas de conhecimento que não a nossa de origem (no meu caso, a comunicação e o jornalismo): novos olhares para assuntos já dados como “certos”, complexificação de questões aparentemente simples são algumas das contribuições que o sair da zona de conforto da nossa área original de pesquisa podem trazer. Em especial, quando o ponto de saída é a comunicação e o de passagem é a antropologia, as diferenças são ainda mais visíveis: há um mundo de possibilidades e aberturas nos estudos da antropologia que são difíceis de serem encontrados na comunicação, uma área às vezes tão fechada em discussões restritivas, sobre demarcação de territórios e fechamento de conceitos enquanto o mundo lá fora acontece múltiplo, desconexo, indisciplinar.
P.s: Na linha da etnografia, um texto clássico (1978) da área que li e gostei se chama “O ofício do etnógrafo, ou como ter anthropological blues“, do Roberto Da Matta. Fácil e bom de ler, traz alguns ensinamentos para ter este tal anthropological blues do título dizendo, resumidamente, que em campo o desafio é 1) transformar o exótico em familiar; e 2) transformar o familiar em exótico. Aqui tem ele pra baixar em PDF.
(a foto é do céu do interior do Uruguai, da Sheila Uberti)