Diário da tese (10): as telas e os lugares

 

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Pode parecer um detalhe, algo que não importa diante da quantidade de assuntos a serem abordados numa investigação, seja ela de doutorado ou não. Mas se até mesmo a TAR nos diz para prestar atenção aos detalhes e considerar objetos e humanos como simétricos na ação-mediação-movimento, como não falar dos lugares e dos objetos que nos cercam na hora de escrever a tese?

É fato: não é fácil achar um lugar que a escrita flua. [E aqui convém lembrar o óbvio: uma tese, como uma dissertação e um trabalho de conclusão de curso, é escrita: estamos falando de composição de narrativas (mesmo que não raras embebidas de um estilo acadêmico chato, ainda assim é uma narrativa) a partir de uma determinada língua. Uma tese poderia ser feita pela fala como nas discussões da Grécia Antiga vencidas pela melhor oratória; com gestos e a dança, como em muitas comunidades indígenas mundo afora; ou mesmo uma narrativa audiovisual ou num game acadêmico, como alguns fazem. Poderia, mas, por enquanto, no sistema acadêmico que prevalece no mundo ocidental, é o texto escrito que conta – seja isso limitante ou organizador, escolha a sua interpretação.] Aquele espaço onde, mesmo não estando num dia produtivo, ainda assim o trabalho proposto no início do dia consegue ser realizado.

Por aqui, me sinto um privilegiado por poder escolher entre alguns lugares. O mais comum é a casa; já foi um quarto isolado como escritório, um sofá na sala mais confortável pras costas, a mesa de comer porque mais ampla que outras, ou ainda o chão porque calhou de ser. Agora, é o que a imagem mostra acima; uma bancada com múltiplas telas, um notebook, um monitor extra e um tablete. Exagero? Claro, mas sempre há os poréns: as duas telas são uma forma de organização de tarefas que tenho testado recentemente, uma destinada a buscas na internet, traduções e leituras em arquivos de texto; a outra, dedicada à escrita somente. Tem se provado eficiente, especialmente quando na tarefa de tradução ou de escrita com base em fichamentos e trechos de livros/artigos. O tablete entrou na composição porque ainda é uma forma boa de ler textos longos, como artigos e livros, em lugares variados e mais confortáveis sem precisar apelar para compra do livro/artigo ou gastar com xerox/impressão e podendo sublinhar/destacar. O mate é sempre companheiro do final das manhãs, ainda mais em temperaturas menores a 20°C, como tem sido as por aqui nos últimos meses.

É uma organização nova ainda pra mim, inspirada na configuração do lugar que mais rende trabalhar em Porto Alegre: a biblioteca da PUCRS. Um espaço amplo, silencioso, sempre com temperatura agradável, horário flexível (7h30-22h45) e com a possibilidade de usar dois computadores: levo o meu notebook para deixá-lo para a escrita, desconectado da internet, e uso um dos vários computadores do local para buscas e outros acessos na internet. Não precisa ser aluno da universidade pra acessar, basta preencher um cadastro (aka “pagar com seus dados”) que dá acesso ao local e a leitura de livros (somente no local, empréstimos não pode). Três ou quatro horas lá ajudam a render qualquer tipo de tarefa que você tenha que fazer com texto e que exija silêncio e concentração. Tanto que vale o investimento de duas passagens de ônibus até lá, caso more longe.

Outros lugares em Porto Alegre onde costumo ir são as bibliotecas da UFRGS – em especial a da psicologia, que conserva umas mesas boas e antigas de madeira e quase sempre tem pouco barulho. Cafés são uma boa pedida para tarefas que não exigem imersão plena-silenciosa em alguma tarefa, como mandar e-mails, corrigir certos textos e outros tipos de coisas que podem ser conciliadas com uma zapeada em redes sociais. Nesse quesito, o Baden Café ainda é imbatível, uma referência na cidade em cafés & espaço de trabalho pelo espaço convidativo e o cardápio do café, embora a internet tenha deixado a desejar nos últimos tempos. Com um fone de ouvido que isole bem o ambiente e uma música (eu prefiro jazz instrumental, tipo a seleção da Accuradio anos 50 ou algo mais na linha Cool/BeBop/Hardbop/swing, ou ainda um som tipo White Noise), às vezes rola escrever em mergulho também. Ainda há os centros culturais públicos, como a Casa de Cultura Mário Quintana, que mantém (ou mantinha, porque faz meses que não vou lá) mesas com acesso gratuito à internet, ou a Biblioteca Pública Josué Guimarães, localizada no Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues, também com muitas mesas e internet grátis. E outros vários a descobrir, mas por hora já está.

Diário da tese (9): o pioneiro Fleck

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As duas aulas finais da disciplina de Antropologia da Ciência que fiz neste primeiro semestre de 2016 foram dedicadas a um autor hoje conhecido na filosofia da ciência/sociologia do conhecimento e nos estudos de ciência e tecnologia (STS), mas desconhecido fora daí: o médico Ludwik Fleck. Hoje ele é considerado um dos pioneiros destas áreas, referência bastante citada na antropologia, sobretudo nos estudos relacionados a saúde, e a influência de sua obra se espalha por muitas das ideias da TAR. Mas nem sempre foi assim, e este post é um pouco para contar a sua história, ainda pouco conhecida.

Em 1935, Ludwik Fleck trabalhava no departamento de medicina interna do hospital de Lviv, sua cidade natal, na Ucrânia quase fronteira com a Polônia. Atendia e exercia funções administrativas durante à tarde, e, pela manhã, se debruçava em leituras de filosofia, sociologia e história da ciência, estimulado pela formação interdisciplinar que teve, como médico, no ambiente efervescente em ideias da universidade de Lviv. Desde 1927 também publicava artigos acadêmicos na área da epistemologia da ciência, “sociologizando” sua área de atuação, a medicina, ao percebê-la como uma atividade coletiva complexa, em que fatores externos a certas descobertas médicas, como o contexto histórico em que foram produzidas, o sistema de ideias vigente e o caráter coletivo de qualquer saber, tinham extrema importância e, portanto, deveriam ser estudados com mais dedicação do que à época se fazia.

As ideias trabalhadas por Fleck teriam seu clímax com o livro “Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico“, publicado em alemão por uma editora de Basiléia, Suiça, em 1935. Numa linguagem não dirigida a especialistas, o livro investiga um caso importante da história da medicina – o desenvolvimento do conceito de sífilis – para, a seguir, tecer suas considerações epistemológicas sobre a estrutura sociológica do saber. Para Fleck, o conhecimento científico, como o conceito da sifílis, se dá a partir de uma série de elementos – o indivíduo, o coletivo e a realidade objetiva – sendo que não há distinção prévia entra qual dos três elementos seria mais importante nem uma observação livre de suposições. Os coletivos de pensamento são o que permitem emergir a produção de um determinado fato científico – coletivos entendido aqui como uma comunidade que desenvolve uma mentalidade própria de comunicar, agir e pensar.

Quando apareceu, a obra de Fleck parecia ter todas as qualidades para ser exitosa; entretanto, teve pouca repercussão. Uma série de situações, da consolidação do Nazismo na Alemanha à somente uma resenha da obra ter sido veiculada em uma revista acadêmica de filosofia e técnica, fizeram com que a obra do médico judeu não circulasse pela Europa. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a ocupação nazista de Lviv, Fleck seria levado aos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald, onde trabalharia forçado nos laboratórios nazistas. Ao fim da guerra, em 1946, junto de sua esposa e filho voltaria a sua Lviv natal. Trabalharia como médico, professor e membro de associações científicas de seu país, tendo por foco não mais a epistemologia da ciência mas o atendimento clínico e os estudos de microbiologia. Morreria em 1961, em Israel.

No ano seguinte a sua morte, em 1962, o alemão Thomas S. Kuhn publicaria aquele que seria o livro mais lembrado de sua obra: “A Estrutura das Revoluções Científicas“. No prólogo, Kuhn cita o livro de Fleck, de passagem, como “uma monografia quase desconhecida de Ludwik Fleck (…), um ensaio que antecipa muitas de minhas próprias ideias” (KUHN, 2006, p.11). Publicado em inglês, por uma grande editora, Kuhn chamaria atenção para o livro de Fleck, que 17 anos depois seria traduzido para o inglês e publicado pela University of Chicago Press, nos Estados Unidos, com prefácio do alemão. Era o início de uma redescoberta da obra, que na sequência do inglês teria suas traduções para o italiano (1983), espanhol (1986) e francês (2005), antes da brasileira, em 2010. Segundo Curi e Santos (2011), só recentemente começam a ser exploradas outras possibilidades do livro de Fleck para além das noções de estilo de pensamento e coletivo de pensamento, consideradas precursoras e semelhantes as de epistémè de Michel Foucault e de paradigma de Kuhn.

No prefácio à edição em francês de “Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico”, Latour critica aqueles que consideram a noção de coletivo de pensamento de Fleck como precursoras de Foucault e Kuhn, dizendo que Fleck “não tratava apenas de estudar o contexto social das ciências, mas de perseguir todas as relações, embates e alianças envolvidas na produção do conhecimento e da história do pensamento” (CURI & SANTOS, 2011). Latour ainda dedicaria um de seus vários boxes de “Reagregando o Social” a Fleck, o que me faz ainda mais crer que muito de seu pensamento enquanto TAR, sua noção do social enquanto movimento – ação – transformação, está em Fleck.

Se quiser dar uma olhada no livro e conferir por si o quanto esta influência existe (ou não), aqui vai a edição em espanhol.

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Estes dias estava lendo a Revista Piauí 117, de junho de 2016, que comprei pela soberba capa (acima) com a cúpula golpista no Brasil retratada como no clássico disco “Tropicália” – aliás, algo que não fazia há anos, comprar revista pela capa. Uma das reportagens da edição é a “Conspiração Amarga“, escrita por Ian Leslie para o Guardian e traduzida para o ptbr por Sergio Tellaroli, um relato amplo sobre a construção da ideia de que a gordura é a grande vilã da alimentação, quando se sabe hoje que o açúcar sempre teve papel mais nocivo ao corpo humano do que a gordura. O texto narra como certos cientistas dos EUA e institutos científicos ligados ao governo de lá tiveram papel considerável na popularização da ideia de que a gordura deveria ser reduzida drasticamente da alimentação cotidiana do cidadão estadunidense, tudo isso a partir de pesquisas com amostras bem questionáveis. E não é que, lá pelo meio da matéria, quando Leslie fala dos meandros internos da construção de verdades nos “coletivos de pensamento” na ciência da nutrição, ele cita Fleck? Foi uma coincidência curiosa ler Fleck em uma revista como Piauí no mesmo momento em que lia seu livro “Gênese e Desenvolvimento”. Zeitgeist.

Imagem de Fleck daqui.

Diário da tese (8): Iniciando a TAR

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Já falei por aqui que a perspectiva teórica/metodológica que utilizo na tese é fortemente baseada na antropologia, em especial no grupo de autores que se costumou chamar de Teoria Ator-Rede – em inglês, Actor-Network Theory, ANT, que não por acaso sugere o trocadilho com Formiga (“Ant” em inglês). Originada nos estudos da Ciência e Tecnologia (em inglês, STS), a Teoria Ator-Rede surge no início dos anos 1980, no contexto de alternativas às concepções estruturalistas e funcionais da ciência; estas oferecem ora explicações sociais, baseadas em relações de causa e efeito ocasionadas pelo social isolado do “fenômeno” a ser analisado, ora essencialistas, centradas no fenômeno a ser analisado, sem considerar as suas relações sociais, econômicas, culturais, etc. Em oposição a isso, pesquisadores como Bruno Latour, Michel Callon, John Law, Madeleine Akrich e Annemarie Mol, entre outros, começaram a defender a ideia de que as inovações científicas e técnicas não poderiam ser pensadas de forma separada do contexto em que se inserem e dos atores envolvidos em sua produção. Assim, propõem uma “sociologia da mobilidade” (um dos muitos nomes já usados antes de TAR), que não considera nada do que quer explicar como algo dado a priori, e onde a explicação para os fenômenos sociais passa a se dar no fluxo, na circulação em rede entre os atores envolvidos, sejam eles humanos ou não-humanos.

Quando a TAR propõe uma análise da circulação de todos os atores envolvidos, passa também a considerar aqueles atores não-humanos no processo. A partir da observação antropológica de redes que constituem, por exemplo, descobertas científicas, estas pesquisas passal a valorizar também o papel das materialidades na produção de uma ação: a produção de um conhecimento científico não pode ser entendida sem os objetos técnicos que participam do processo. Como explica Michel Callon nesta entrevista de 2008, a ideia de dar a mesma importância a ambos vem em oposição “a uma distinção constringente, historicamente marcada e que corresponde ao modernismo, quero dizer, à convicção, segundo a qual há duas categorias de entidades no cosmos, a saber: os humanos e os outros”.

No Brasil, esta perspectiva é conhecida sobretudo pela obra de Bruno Latour, filósofo francês que já veio diversas vezes pra cá e que tem muitos livros traduzidos para o português, com destaque para “Ciência em Ação“, (Unesp/2000), “Jamais Fomos Modernos” (Editora 34/1994) e “Reagregando o Social” (Edusc/Edufba 2012). Por sinal, alguns livros infelizmente mal traduzidos, o que faz com que muita gente – entre eles o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, interlocutor comum de Latour – não recomende as edições em português lançadas aqui pela Edusc, de Bauru, como a de “Reagregando”, feita em parceria com a Editora da UFBA. Li alguns textos de Latour em espanhol e inglês e me pareceu que, para quem quer se debruçar, vale o esforço de ler uma obra tão densa, confusamente escrita (como é o estilo do francês, prolixo e confuso), em outro idioma que não o português.

Apesar da popularidade de Latour, o fato é que há muita TAR pra além dele. Estou terminando um capítulo que apresenta alguns conceitos atores-rede básicos, e que usarei pra minha tese, como simetria, tradução e mediação, e estou vendo que John Law, Michel Callon e Annemarie Mol, por exemplo, tem estudos excelentes trabalhando com a perspectiva da TAR com objetos tão distintos quanto, respectivamente, as navegações portuguesas do século XVI, a queda do crescimento da população do molusco conhecido como Vieira na França e as diferentes formas que uma doença como a anemia podem ser “performadas” nos diferentes atores que fazem parte de sua rede (médicos, pacientes, enfermeiros). Nesse site, mantido por Law, há uma base de textos (em inglês) do que se identifica como Actor-Network Theory, boa parte com comentários rápidos que guiam o leitor para o que trata cada um; nesta outra página a bibliografia está dividida por tópicos. Deixo aqui em PDF três dos textos iniciais, considerados basilares da área, escrito nos anos 1980 e ainda importantes para entrar no cansativo (mas prazeroso) caminho da TAR.

_ Callon, Michel and Latour, Bruno (1981). Unscrewing the Big Leviathan: how actors macrostructure reality and how sociologists help them to do so. In K. D. Knorr-Cetina and A. V. Cicourel (Eds.) Advances in Social Theory and Methodology: Toward an Integration of Micro- and Macro-Sociologies. Boston, Mass, Routledge and Kegan Paul: 277-303.

_ Callon, Michel. (1986). Some Elements of a Sociology of Translation: Domestication of the Scallops and the Fishermen of Saint Brieuc Bay. In J. Law (Ed.) Power, Action and Belief: a new Sociology of Knowledge? Sociological Review Monograph. London, Routledge and Kegan Paul. 32: 196-233.

_ Law, J. (1986). On the Methods of Long Distance Control: Vessels, Navigation and the Portuguese Route to India. In J. Law (Ed.) Power, Action and Belief: a new Sociology of Knowledge? Sociological Review Monograph. London, Routledge and Kegan Paul. 32: 234-263.

Crédito imagem: “Reagregando o Social”, 2012.

Diário da tese (7): Liberando o bruto

Você sabe que, na internet, tudo que você faz pode ser rastreado e agregado. Os sites que acessados, os posts que você faz em redes sociais, as “curtidas”, compartilhadas e qualquer outro movimento realizado na World Wide Web, através de um navegador como o Chrome ou o Firefox, ou através de aplicativos baixados para seu celular/tablet/etc, geram dados que podem ser rastreados (se você usa criptografia isso é um pouco mais difícil). Reunidos e combinados, estes dados podem dizer muita coisa sobre a sua vida e a vida humana e não-humana no planeta, e é isso que se tem chamado de big data.

Nas investigações acadêmicas, a possibilidade de rastrear e agregar as informações possibilita transformações consideráveis no jeito de se fazer pesquisa. Bruno Latour, no texto “Beware, your imagination leaves digital traces” (2007) lembra que, quando nossos hábitos cotidianos (como comprar um livro) são atravessados pela tecnologia digital e pela internet, as diferenças entre os âmbitos social, econômico e psicológico de nossas vidas são apagados: “The ancient divide between the social on the one hand and the psychological on the other was largely an artefact of an asymmetry between the traceability of various types of carriers: what Proust’s narrator was doing with his heroes, no one could say, thus it was said to be private and left to psychology; what Proust earned from his book was calculable, and thus was made part of the social or the economic sphere. But today the data bank of Amazon.com has simultaneous access to my most subtle preferences as well as to my Visa card. As soon as I purchase on the web, I erase the difference between the social, the economic and the psychological“.

Pensando também nisso, Tommaso Venturini, pesquisador que trabalha com Latour no Sciences Po em Paris, desenvolveu em dois artigos uma metodologia, chamada Cartografia das Controvérsias, onde o rastrear e agregar informação na rede pode ser usado para expor toda a documentação utilizada numa investigação científica. Ao criar um site-repositório, o pesquisador disponibiliza todas (ou quase todas, porque algumas podem não ser possíveis de trazer) as informações que utilizou para construir sua pesquisa, em especial aquelas que são digitalizadas e que podem ser rastreadas porque foram publicadas na internet.

A documentação do trabalho realizado possibilita reverter as simplificações inevitáveis que o pesquisador teve que fazer ao transformar seus dados em um produto, geralmente uma peça escrita como um artigo ou uma tese. Graças ao ambiente hipertextual quase infinito da internet, podemos disponibilizar não só os resultados como cada passo da pesquisa, encorajando o reuso dos dados e das técnicas de pesquisa por outros pesquisadores, ou simplesmente deixando transparente os processos de edição realizados ao dar a possibilidade de confronto entre o que foi pesquisado e o que foi (vai ser) publicado.

Inspirado por Venturini e Latour, e também pela filosofia do software livre na qual sou entusiasta, resolvi eu também criar um repositório online das informações de minha pesquisa. A ideia é a de expor o bruto dos dados para que seja possível ver as escolhas simplificadoras que tive de fazer ao longo do tempo para por as informações em um formato que se convencionou chamar de “tese”, este trabalho final realizado após 3 ou 4 anos de um curso de doutorado (no Brasil). Também disponibilizo como forma de potencializar um reuso destas informações que obtive no processo de feitura da investigação, caso alguém tenha interesse nisso.

Minha pesquisa não é feita por um grande laboratório com muitos investigadores nem financiada pela União Européia, como foi o caso da que baseou os artigos de Venturini – o site com o bruto da pesquisa continua na rede, mesmo ela tendo sido finalizada em 2010. Mas este trabalho, como todos, é coletivo, feito com a contribuição milionária de múltiplos erros (Oswald!) e de muitos artigos/livros/comentários disponíveis na rede. Nada mais justo que devolver um pouco a esta mesma rede que está possibilitando ele ser feito.

Vou disponibilizar o bruto nesta página, e dividido em quarto partes: projetos, fichamentos/referências, matérias na mídia e dados de pesquisa. A primeira são os projetos que fiz ao longo dos 4 anos de doutorado, sendo o primeiro o utilizado na seleção, em 2013, e o segundo o defendido na qualificação, ano passado. A segunda são as referências que estou utilizando para construir o trabalho, e os fichamentos que estou produzindo destes textos, muitos em arquivos algo caóticos, como é o caso dos dois textos de Venturini, disponibilizado nessa primeira leva. Aliás: nem todos os textos faço o fichamento, e alguns faço só de certos capítulos e trechos de determinadas obras, mas disponibilizo igual todos que conseguir. Na terceira parte trago os links das muitas matérias e textos publicados em mídias diversas na internet. Por fim, na última parte vou disponibilizar as entrevistas e os diários de campo das observações realizadas, se os entrevistados assim permitirem, e a coleta de dados que fiz na rede para analisar os momentos que estou investigando para a tese.

A ideia é trazer este material na medida em que ele vai sendo produzido, espero que semanalmente nestes próximos (e últimos!) meses de trabalho para a entrega da tese. Alguns artigos que já publiquei e estou a publicar por aí estão na seção Publicações deste site, e quem tiver afim de conferir verá que muita coisa da tese virá deles também.

Tá lá: INVESTIGAÇÃO DE DOUTORADO.

Diário da tese (6): voltar do campo e escrever

Voltar do campo, escolha das “controvérsias”, definir prazos e capítulos, sobre o fazer da tese: esses todos eram os temas pra escrever na volta do diário da tese. Mas justo estas quatro coisas foram os motivos principais pelos quais este diário está há quatro meses sem atualização. O trabalho de chegar do campo, dar o tempo necessário para se distanciar do diário para então voltar a ele e (re) ver a pesquisa de modo a encaminhar a escrita da tese; de, a partir daí, retrabalhar a metodologia sob a perspectiva de que ela é uma construção ao longo do tempo e de acordo com o objeto e não o contrário; e, finalmente, o contexto político brasileiro, que fez de março um mês movimentado de protestos em ambos os “lados” do espectro político nacional e de abril, maio e junho meses de Impeachment, situação que modificou (e potencializou o alcance) das ações da Mídia Ninja, o objeto analisado. Todos foram fatos para este diário se atrasar e só vir aqui, agora, nesse momento, também como um descarrego – “faça esse post que está no rascunho faz meses e depois reorganiza o site e o diário conforme tu planejou!”.

Aí está.

[E pra não ficar só nisso: terminei o fichamento dos dois textos de Tommaso Venturini que definem a Cartografia das Controvérsias, uma metodologia criada por Bruno Latour e desenvolvida por Venturini como uma espécie de versão “prática” da Teoria Ator-rede . São os artigos: Diving in Magma: How to Explore controversies with Actor-Network Theory (2009) e Building on faults: how to represent controversies with digital methods (2010), escritos na sequência para uma mesma revista, Public Understanding of Science. O trabalho apresenta como identificar e explorar as controvérsias (1) e representá-las digitalmente (2).

Nesta parte dois, Venturini faz uma interessante proposta de deixar todo o material utilizado na pesquisa de forma aberta, na rede, em um site-controvérsia – que no caso dele, foi um projeto coletivo encabeçado pelo Médialab do Sciences Po, de Paris (onde Latour e Venturini trabalham), chamado MACOSPOL (MApping COntroversies in Science and techonology for POLitics). Ele embasa sua escolha de diversas formas teóricas que não vou citar agora aqui, mas dois pontos são essenciais: o fato de, na internet, tudo pode ser rastreado e agregado; e a reversibilidade, nas palavras de Venturini: “Like Theseus, scientists wouldn’t wander the maze of representation without a thread to follow back. By maintaining the reversibility of aggregation, researchers assure themselves (and their peers) the possibility of climbing back up their formalizations and then trying other descents“(p.7).

Baseado nisso é que, nas próximas semanas, vou trazer algumas novidades pra esse diário.]

 

Diário da tese (5): seguindo em frente

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Começo o 2016 com a cabeça ainda nos comentários e retornos dos congressos e conversas que tive em novembro e dezembro de 2015, nas possíveis implicações que estes terão na tese e, ao mesmo tempo, com a preocupação de seguir em frente na pesquisa de campo, por isso este primeiro texto de 2016 vem só em fevereiro.

Como falei no post anterior, foram dois os eventos acadêmicos que participei: o II Congresso Internacional de Net-ativismo, em São Paulo, e a XI Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), em Montevideo. No primeiro apresentei um artigo que não trata diretamente do assunto da minha pesquisa, e sim de desdobramentos do que norteava o projeto com que entrei no doutorado – que tratava de jornalismo e a cultura hacker – com a discussão do conceito de mídia tática, muito difundido no Brasil na década de 2000 e próximo às minhas ações práticas no BaixaCultura (página que edito desde 2008) e na Casa da Cultura Digital em São Paulo.

A ideia do trabalho foi de resgatar o histórico do conceito, originária da leitura de Michel De Certeau  em “A Invenção do Cotidiano” (1994) sobre as práticas e táticas criativas que a cultura popular produz com os artefatos e técnicas que a rodeiam, e que apareceu organizado como um conceito estruturado pela primeira vez com Geert Lovink e David Garcia no seminal “O ABC da Mídia Tática“, de 1997. É uma concepção teórica originária do contexto europeu pós queda do muro de Berlim e que se desenvolveu em festivais e redes de comunicação, tecnologia e ativismo no final da década de 1990 e início dos anos 2000 como “uma tentativa de identificação de uma tendência de convergência nos campos políticos e culturais desta época, influenciada pelo crescimento da produção midiática viabilizada por equipamentos baratos e de fácil utilização”, como diz Lovink no texto “Atualizando a mídia tática. Estratégias de midiativismo”, presente num dos capítulos do livro “Informação, Conhecimento e Poder: Mudança tecnológica e inovação social“, de 2011.

No artigo, identifiquei alguns exemplos da chamada “era de ouro” das mídias táticas, no final da década de 1990, como o flood net em apoio aos zapatistasdesenvolvido pelo Eletronic Disturbance Theater, uma estrutura ad hoc com os integrantes do coletivo Critical Art Ensemble (a ação está documentada neste link); o caso Dow Ethics, proposto pelo Yes Men, em que dois integrantes do coletivo aplicam um “trote” clássico na BBC britânica quando um deles se passa pelo executivo da empresa Dow Chemicals e concede uma entrevista ao vivo assumindo que vai pagar os custos do desastre químico promovido pela empresa causado na cidade indiana de Bhopal. Pro Brasil de 2016, seria como se um integrante de um coletivo de ativistas tivesse convencido a Globo de que era um executivo da Samarco, principal responsável pela tragédia em Bento Rodrigues – Mariana, e concedesse entrevista num programa como o Jornal da Globo assumindo que a empresa vai pagar uma indenização de bilhões de reais às famílias atingidas (o que, convenhamos, deveria ser o mínimo, não?). Fiz uma versão desta primeira parte do artigo neste post do BaixaCultura. Num segundo momento, trouxe um breve histórico da mídia tática no brasil, enfatizando a (re) apropriação feita a partir da gambiarra e uma aproximação com os princípios da ética hacker. Farei uma versão desse post pro BaixaCultura nas próximas semanas.

No segundo apresentei um artigo que discutia a mediação e os objetos técnicos na Mídia NINJA, a partir de alguns dados da primeira parte da observação participante que estou fazendo. [O arquivo em PDF que fiz para guiar a apresentação está aqui]. A proposta foi discutir, no GT de Simetria, Agência e Etnografia: Experiências de Pesquisas Sobre Relações entre Humanos e Não Humanos, qual a agência dos objetos na mediação jornalística da NINJA.

Foi um momento de muitos aprendizados sobre a prática da etnografia, área que os antropólogos criaram e dominam, e alguns retornos importantes sobre a pesquisa. Por exemplo: a ideia de levar menos pressupostos a campo e descrever aquilo que acontece, de forma direta, deixando para os atores definirem (se quiserem) aquilo que fazem – caso, por exemplo, de jornalismo ou ativismo – e não o pesquisador “explicar”, em 2º mão. Outra: campo é deslocamento, não só estar em um lugar “físico”, o que significa que o trabalho de campo pode ir além do espaço geográfico e percorrer as redes sociais e outros “lugares” da internet – aqui, a ideia da etnografia multi-situada entrou para ficar. Mais uma: não há resposta definitiva sobre se os atores são intermediários (que não “traduzem” nada) ou actantes (“que fazem outros fazerem coisas”) na mediação: essa resposta será temporária para um dado momento (o analisado), no curso da ação.

Todas ideias podem parecer óbvias para quem já está na antropologia há muito tempo, mas este não é caso aqui. A participação na RAM só reforçou, pra mim, o quanto faz bem transitarmos por áreas de conhecimento que não a nossa de origem (no meu caso, a comunicação e o jornalismo): novos olhares para assuntos já dados como “certos”, complexificação de questões aparentemente simples são algumas das contribuições que o sair da zona de conforto da nossa área original de pesquisa podem trazer. Em especial, quando o ponto de saída é a comunicação e o de passagem é a antropologia, as diferenças são ainda mais visíveis: há um mundo de possibilidades e aberturas nos estudos da antropologia que são difíceis de serem encontrados na comunicação, uma área às vezes tão fechada em discussões restritivas, sobre demarcação de territórios e fechamento de conceitos enquanto o mundo lá fora acontece múltiplo, desconexo, indisciplinar.

P.s: Na linha da etnografia, um texto clássico (1978) da área que li e gostei se chama “O ofício do etnógrafo, ou como ter anthropological blues“, do Roberto Da Matta. Fácil e bom de ler, traz alguns ensinamentos para ter este tal anthropological blues do título dizendo, resumidamente, que em campo o desafio é 1) transformar o exótico em familiar; e 2) transformar o familiar em exótico. Aqui tem ele pra baixar em PDF.

(a foto é do céu do interior do Uruguai, da Sheila Uberti)

diário da tese (4): jornalismo e/ou ação?

 

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O semanário da tese falhou nas últimas semanas, mas nesta cá estamos, com um texto menorzinho, com um dos temas que desde a qualificação (ou até antes dela) tem me perseguido na pesquisa: a relação entre jornalismo e/ou ativismo.

Uma das perguntas que Fábio Malini fez na banca ainda ressoa por aqui: quão ativista deve ser o jornalista? ou, do contrário: quão jornalista deve ser o ativista? Pelo entendimento de mediação da TAR que resgatei no post passado, refaço a pergunta: quão ativista consegue não ser o jornalista? Na mediação, qualquer que seja, não existe neutralidade, e sim a influência de uns mais do que outros na rede de mediações envolvidas. Sabe-se que no jornalismo, a ideia de ser objetivo, de buscar fazer um relato mais próximo possível à dita realidade é, a grosso modo, um procedimento: nunca vai se conseguir ser completamente objetivo, mas é possível ser mais ou menos objetivo de acordo com os procedimentos adotados. O jornalismo moderno do século XIX pra cá adota esse lema como regra de ouro de seus manuais. Mas as redes modificam esse cenário ao mostrarem, de modo mais rápido e fácil, os múltiplos pontos de vista possíveis de um dado acontecimento, deixando mais evidente o que antes era velado: que o relato jornalístico fruto desses procedimentos objetivos pode estar muito mais longe da realidade que se quer mostrar do que a instituição “jornalismo” faz crer.

Assim, o “lado” em que aquele relato foi produzido é mais escancarado do que antes, e muitas vezes mais do que a instituição jornalística tradicional gostaria.  Se esse lado é a manutenção de um status quo que vai contra direitos humanos fundamentais (como o caso, por exemplo, do PL do Aborto do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que dificulta o acesso ao aborto legal para vítimas de violência sexual), como não se posicionar? Como fazer uma matéria e usar de procedimentos para atingir uma objetividade sabendo que estes procedimentos podem (supostamente) equilibrar lados tão desequilibrados historicamente e na realidade brasileira atual como o direito das mulheres sobre seu corpo?

Esse é um dos dilemas do jornalismo hoje, que é traduzido de forma rápida na frase “a transparência é a nova objetividade“. Numa situação como a citada acima, alguns jornalistas, professores e pesquisadores da área estão a trabalhar com a ideia de que a transparência – assumir uma posição, um lugar de fala – pode substituir a objetividade na cultura jornalística como procedimento (ou ritual estratégico, segundo Gaye Tuchman) para relatar determinado acontecimento. A transparência de adotar determinada posição em detrimento de outras é uma das marcas de certo midiativismo, o que embaralha mais a questão discutida no post anterior sobre “quando se é jornalismo” e “quando se é ativismo”. É possível separá-los?

Estou resumindo aqui uma questão que é muito mais complexa só para vocês perceberem o tamanho que é essa discussão. Sigo, nesse momento, por dois caminhos apontado pela banca de qualificação: a relação do jornalismo-ativismo, de um lado, e de outro a antropologia. Ao me aprofundar na Teoria Ator-Rede, me aproximei da área de onde ela nasceu, a antropologia e a sociologia da ciência, e tenho ido mais na origem de algumas concepções antropológicas para esmiuçar tanto a ideia de mediação proposta por Latour e cia quanto a noção de agência não humana.

Não por caso, dois artigos que estava trabalhando (e que me fizeram não postar aqui nas últimas semanas) são, justamente, para dois congressos nessas duas áreas: O II Congresso Internacional de net-ativismo, entre 16 e 19 de novembro em São Paulo, e a XI Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), entre 30 de novembro e 5 de dezembro, em Montevideo. Espero com eles conseguir entender e esmiuçar melhor algumas questões, que trago pra cá depois que terminar estes eventos.

 

(foto Mídia NINJA/Brasil de Fato)

diário da tese (3): a questão da mediação

mediacao traducao

Como prometido, o diário-semanário da tese traz hoje algumas questões discutidas na qualificação do projeto de tese, intitulado até então de “A Mediação no jornalismo feito por não jornalistas: um estudo das agências humanas e não humanas na Mídia NINJA“. Digo até então porque título é das partes que mais se mexe num trabalho acadêmico, e este será mudado por, entre outros fatores, trazer uma questão importante apontada pela banca: será que as pessoas que trabalham na Mídia NINJA não são jornalistas mesmo? No sentido de não serem formados numa faculdade de jornalismo está claro que não são, mas jornalista só é aquele que tem um diploma de universidade?

É uma questão que rende muitas discussões na academia, no mercado profissional e nos tribunais – atualmente, não é obrigatório o diploma para ser jornalista, mas o assunto está sendo discutido novamente na Câmara dos Deputados. Do ponto de vista do trabalho analisado em questão, não, jornalista não é só aquele que é formado em jornalismo, porque a concepção que defendo nos referenciais teóricos é de que o jornalismo é, acontece, a partir de determinadas circunstâncias de mediação dadas na ação, e não por questões estabelecidas a priori, como formação ou registro profissional.

É uma visão influenciada pela concepção de mediação trabalhada pela Teoria Ator-Rede (TAR), em especial por Bruno Latour, e por alguns trabalhos que aproximam a TAR ao jornalismo, como um artigo de 2015 de Alex Primo e Gabriela Zago. Esta concepção vê a mediação sempre como movimento, ação, tradução, um processo híbrido, instável e constituído de diversos elementos estabelecidos em uma rede de significados (como diz Latour em On Technical Mediation, texto de 1994 chave para entender essa visão).

Dois pontos são importantes: o primeiro é assumir que, como toda tradução, há sempre um grau de interferência destes elementos na rede de significados constituída. Não existe um mediador “puro”, que não vai interferir na ação e vai traduzi-la tal qual ela é. Pode parecer uma questão óbvia, ainda mais para quem trabalha com tradução de textos de uma língua para outra, mas basta olhar os jornais de grande circulação no Brasil, como Folha de S. Paulo, O Globo e Zero Hora, no papel ou em suas versões digitais, para perceber que a visão predominante no jornalismo ainda é a de que o jornalista relata “a verdade” de forma transparente, o que pressupõe que não existe intereferência. Admitir que existe construção no processo de tradução que ocorre na mediação só deveria ser um problema se ainda considerássemos as notícias e a realidade a mesma coisa, visão que desde Walter Lippmann em seu clássico “A Opinião Pública“, lá em 1922, já se criticava: “a hipótese que me parece mais fértil é que as notícias e a verdade não são a mesma coisa e precisam ser claramente distinguidas”.

O segundo ponto é um dos mais polêmicos: se devemos entender a mediação como tradução em que todos os atores envolvidos podem interferir na ação, então os objetos técnicos também devem ser incluídos aí – e se vamos estudar as mediações, precisamos estudar estes objetos. No caso do jornalismo, as discussões sobre se robôs podem ou não fazer uma notícia, o jogo de mostra-esconde do algoritmo do Facebook, softwares utilizados no jornalismo de dados, por exemplo, são questões em que a ação dos objetos técnicos está bastante saliente, mas mesmo outras em que, a princípio, essa ação não é tão visível – como o publicador de notícias de um jornal online, os blocos de anotação usados pelos jornalistas ou o uso do telefone para uma entrevista – também podem ser melhor compreendidas à luz dessa ideia de mediação como tradução trazida pela TAR.

Para não alongar muito essa discussão que é intensa, densa e tem rendido livros e mais livros, volto ao título do trabalho: “A Mediação no jornalismo feito por não jornalistas: um estudo das agências humanas e não humanas na Mídia NINJA”. Será que posso fazer essa distinção já no título entre jornalistas e não jornalistas na hora de trabalhar a mediação? Se considerar que o jornalismo pode ser feito por um profissional denominado jornalista, estou, de um lado, também trabalhando com um a priori, o de que certos humanos – jornalistas – são mediadores privilegiados, e só cabe a eles fazerem jornalismo. Seria uma contradição com a ideia de que a mediação é uma tradução, um movimento, e de que os papéis assumidos na mediação são relativos, que só podem ser definidos quando analisados no curso da ação.

De outro lado, afirmar que o jornalista é um mediador privilegiado e que só ele pode fazer o que se convencionou chamar de jornalismo é trazer a questão para o jornalismo enquanto profissão, institucionalizada desde o final do século XIX, período de florescimento do ideal moderno que, justamente, tinha como fato o de que… a realidade poderia ser mostrada tal qual ela é a partir da ideia da objetividade. Algo que, sabemos hoje, não pode. Se vai ser possível/viável ou produtivo conciliar estas duas questões num único trabalho acadêmico é algo que ainda não sei…

(Imagem que abre o post é uma ilustração do artigo On Technical Mediation, de Bruno Latour, 1994)

Diário da tese (2): a técnica da qualificação

jittsi

A defesa do projeto de tese no processo que se chama “qualificação” na academia ocorreu semana passada, e foi tudo bem. A banca trouxe excelentes contribuições para melhorar (e reformular) algumas questões do projeto. Deixou mais claro alguns caminhos em vez de outros. Promoveu debate sobre questões que até então pouco tinham sido conversadas cara a cara. E com isso, trouxe um pouco de segurança para se tocar os próximos passos. Dito isso, vamos aos detalhes.

Cheguei cerca de 1h antes da banca para testar os equipamentos, já que não ia usar os que se costuma usar naquela sala. Explico: a mim não faz sentido estudar objetos técnicos e a mediação e fazer uma chamada voz sobre IP em um software “caixa-preta” que seu código só é conhecido pela sua empresa, como é o caso do Skype e da empresa que o desenvolve, a Microsoft. Se boa parte dos intuitos da pesquisa com que, por exemplo, a Teoria Ator-Rede (TAR) trabalha, é o de abrir as caixas pretas e ver o social em formação, em fluxo (e rede), então a escolha dos objetos a fazer parte da videoconferência também deve buscar essa abertura. Pelo menos é o que acredito, e conta aí também alguns anos de defesa e uso do software livre, movimento que justamente defende a abertura dos códigos como questão primordial de liberdade, segurança, acesso ao conhecimento e, principalmente, autonomia. Fiz um artigo de uma disciplina do doutorado, inclusive, propondo essa aproximação da TAR com a filosofia do software livre, que ainda vou revisar e publicar em algum lugar – ou de repente trago aqui mesmo do jeito que está.

As opções que tinha levantado era o Mconf, programa bem completo de videoconferência produzido por um grupo da própria UFRGS, e o Meet.jit.si, muito utilizado pelo pessoal do software livre. Já havia testado ambos e gostado mais do segundo, embora o primeiro seja interessante também e um ambiente bastante completo para grupo de estudos e videoaulas. Na sala destinada a banca, ligo o computador e detecto uma primeira questão: assim como todos os outros que já tive acesso na UFRGS, o computador tem como sistema operacional Windows, da mesma Microsoft. Meu lado ativista/pesquisador apita: por que uma universidade pública usa em seus computadores um sistema operacional que custa alguns milhares de reais por ano em licenças tendo a opção de, com esse mesmo dinheiro de licenças, bancar um grupo de desenvolvimento e customização de alguma distribuição livre baseada em GNU/Linux específica pra universidade?

Encontro duas razões principais: o fato das pessoas estarem “acostumadas” a usar mais o Windows, já que ele foi colocado na cotidiano de muita gente desde muito cedo; e, o lobby político e financeiro da Microsoft, que explica a primeira também. Ambas razões, a meu ver, deveriam ser questionadas por universidades públicas que sempre dizem ter como princípios o livre acesso ao conhecimento: quão livre é esse conhecimento se não temos acesso aos códigos que são construídos os softwares de um computador que usamos? Não seriam estes softwares também conhecimento que devemos ter livre acesso? Ou o entendimento geral é de que os computadores e seus códigos seriam apenas “ferramentas”, meios que não interferem nos fins a que são destinados? Sob esta perspectiva política (e econômica) é que pode se compreender o uso do Windows na universidade: “vamos pagar a Microsoft para fornecer um produto fechado e não pensar mais nisso” é melhor que “que tal desenvolvermos nossa própria distribuição livre customizada e assim abrir as ‘caixas-pretas’ dos nossos computadores e sabermos minimamente o que tem ali?”. Como se percebe, este ponto de vista da neutralidade da técnica, criticada pelos pesquisadores da TAR e por tantos outros filósofos (Heidegger entre eles) e pensadores, ainda predomina (e muito!) no nosso senso comum.

Com Windows a contragosto, surge o segundo problema: não há o navegador Chrome instalado, de modo que tenho de baixá-lo e instalar, já que o “jitsi”, por enquanto, só funciona em Chrome (e sua variante livre, o Chromium). Vou falar com o pessoal da “técnica” – assim são chamados o pessoal do “Setor de Informática” – pra ver a possibilidade de baixar o Chrome, já que tinha ouvido falar que certos computadores da universidade não tem permissão pra instalar softwares. Eles me dizem que é possível sim, mas que no próximo início do computador o Chrome vai estar apagado; afirmam que esse é o funcionamento de praxe para evitar a instalação de programas desnecessários pelos alunos; questão de segurança. Digo do meu desejo de usar um outro sistema de videoconferência para a banca: eles respondem que possivelmente não vai funcionar, porque o CPD (Centro de Processamento de Dados) pode barrar os pacotes de dados em outros softwares que não os testados na máquina. Precisaria ter avisado com antecedência para eles testarem, é o que me falam.

Não quis mais discutir e voltei pra sala da qualificação. Instalamos a webcam, testamos o áudio. Entrei no Skype e loguei com minha conta – que nem lembrava mais, faz pelo menos uns três anos que não usava ele. Mas também baixei o Chorme e fiz uns testes com o Jitsi: funcionou bem, ouvi claramente o professor da banca (Fábio Malini) e ele me ouvia. A imagem oscilava, mas mais por conta da conexão (cabeada, rede da universidade) do que por outro motivo. Testei a opção do jitsi em compartilhar a tela com o outro participante, de modo a poder mostrar a tela da apresentação da quali, mas deu “tilt”: travou o som de retorno do Malini e ele não nos ouvia mais. Como já havia passados 5 minutos do horário de início, desativei essa função e regulei a webcam para mostrar a tela do projetor que estava sendo passada a apresentação. Gambiarra que deu certo e assim começamos a banca, com minha apresentação, seguido da fala de Malini, a de Alex Primo e minhas respostas. Como já disse na abertura do texto, foi uma ótima banca (pelo menos pra mim) e trouxe muitas contribuições pro andamento da pesquisa.

Na semana que vem falo mais desses encaminhamentos; aqui está o PDF da apresentação utilizada.

Diário da tese (1): do início até a qualificação

imagem post blog

Entrei no doutorado em comunicação e informação no PPGCOM da UFRGS em março de 2013. De lá até aqui, setembro de 2015, muita coisa aconteceu nesse processo: disciplinas cursadas na UFRGS e na PUCRS (existe um convênio entre os programas de pós-graduação em comunicação da região – Unisinos e UFSM, além dos já citados – que possibilita esse intercâmbio para cursar disciplinas, de forma gratuita e a depender da disponibilidade de vagas); estágios-docências realizados (no doutorado, dois são obrigatórios para quem é bolsista CAPES, o que é meu caso; fiz ambos em webjornalismo, no curso de jornalismo); orientações de trabalhos finais da graduação (oficialmente coorientação, porque só professor da universidade pode “assinar” a orientação do trabalho, segundo normas da UFRGS de 2014 pra cá, o que é uma questão complexa a se discutir em outro momento); entre outras coisas diversas que não vale citar aqui.

Nesse período, é natural – eu diria até normal – que o projeto inicial do doutorado se altere. Foi o meu caso; do nome do projeto com que entrei no doutorado, “Cultura hacker no jornalismo: métodos e ética do it yourslelf nas práticas jornalísticas contemporâneas do ciberespaço“, só a palavra jornalismo permanece hoje. Leituras, vivências e problemáticas levantadas nesses dois anos e meio foram os fatores responsáveis por essas mudanças, muitas delas trazidas pelas disciplinas cursadas, outras tantas por experiências fora da academia – no meu caso, a pesquisa estava (e ainda está) umbilicalmente ligada com minha prática fora da universidade. Nunca consegui pesquisar assuntos que não permeiem minha ação prática, profissional ou não, e suspeito que fazer esta separação seja um dos motivos pelo qual a universidade continua a construir muros de separação com a comunidade (a “realidade”), com raras exceções em alguns cursos e oficinas e nos projetos chamados de “extensão”. Projetos que, no caso de programas de pós-graduação em comunicação, não são comuns; no programa onde estou, só sei da existência de um destes projetos, e não me parece que seja muito diferente nos outros 44 programas existentes na área no Brasil, segundo a CAPES. Culpa do sistema produtivista, que não valoriza muito no Lattes esse tipo de ação, e também de todos que cá estamos, que às vezes não estamos preocupados (ou não queremos, ou – mais raro – não conseguimos) em trazer algum retorno, depois de anos de estudo, para determinada comunidade.

Mas voltando ao projeto: embora muita coisa tenha se modificado, outras permanecem. O projeto atual tem o nome de “A mediação no jornalismo produzido por não-jornalistas: um estudo das agências humanas e não-humanas na Mídia Ninja“. Da bagagem teórica e prática sobre cultura hacker e jornalismo que pesquisei nos últimos,  algumas questões permanecem, sobretudo da relação da ética hacker com a ideia de transparência presente em alguns coletivos de comunicação e o espírito “faça você mesmo” sem pedir autorização nem a “benção” de alguém. Outras mudanças são substanciais, como a forte presença da teoria ator-rede no trabalho (“agências humanas e não-humanas” vem daí), popularizada (e questionada) pelo antropólogo Bruno Latour, que tomei conhecimento em uma das disciplinas cursadas no PPGCOM, “Artefatos da Cultura Digital”, com a professora Suely Fragoso, e foi uma daquelas experiências conceituais que “viram a chave” de diversos entendimentos, tanto pra pesquisa específica como pra vida.

Este post inaugural do diário da tese tem um motivo especial de sair hoje: amanhã, dia 1/10, às 15h no auditório 2 do prédio da Fabico (faculdade de biblioteconomia e comunicação onde se situa o PPGCOM) vou a qualificação com este projeto. A banca é formada por Virgínia Fonseca, minha orientadora, e Alex Primo (UFRGS) e Fábio Malini (UFES). A qualificação é como uma pré-banca, onde o projeto de tese é avaliado e criticado, com o objetivo de afiná-lo até a defesa final, no meu caso a ser realizada entre dezembro de 2016 e março de 2017. Neste um ano e alguns meses até lá, o objetivo aqui é compartilhar referências, problemas, angústias e informações desse trabalho extremamente solitário que é a feitura de uma tese – por mais que haja orientador, colegas, amigos e grupos de pesquisa para se discutir, é sabido que a feitura de uma tese é um processo interno profundo, de cada um e seu(s) computador(res). Que seja, então, um processo solitário compartilhado.

P.s: Aproveitei a ocasião também para compilar alguns materiais espalhados, publicações e utilizados em aulas, palestras e oficinas, neste mesmo site, assim como informações sobre projetos que participo/participei. A ideia é ir agregando novos na medida em que forem sendo produzidos.

(a foto que abre o post é da Sheila Uberti)