Sobre uma foto e o interior do sul

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Essa foto foi feita em 24 de julho de 1943, data do casamento dos meus avós maternos Josephina e Guerino Feltrin, que estavam no coreto da Praça Saldanha Marinho, centro de Santa Maria. Nesse dia, os dois com vinte e poucos anos (ela 21, ele 25), saíram cedo de onde moravam, a Colônia Vacacaí (hoje distrito de Santa Flora, cerca de 30 Km ao sul de Santa Maria), e foram para o cartório mais próximo casar. Com suas mais caras roupas, sentaram-se num banco da praça depois do cartório e pediram um registro ao fotógrafo lambe-lambe. 74 anos depois encontrei esse registro na casa de uma tia, a que nasceria 9 meses depois desse momento.

Ambos eram filhos e netos de agricultores, brutos imigrantes italianos que falavam mais em dialeto (o vêneto) do que em português. Trabalharam desde cedo nas roças de fumo, milho, feijão, trigo e tudo (que poderia dar nas produtivas terras que seus avós receberam (não há registros disso, mas é o que acontecia) do governo brasileiro como recompensa para vir para o interior do Brasil. Sabe-se que, após a Abolição da Escravatura (1888), os agricultores e fazendeiros brasileiros optaram pela mão-de-obra de origem europeia, em vez de de integrarem os ex-escravos ao mercado de trabalho. No caso do interior do Rio Grande do Sul, o governo da época estimulou a imigração também como forma de “ocupar” a região. Santa Maria faria parte da 4º colônia de imigração italiana, que hoje compreende cidades como Faxinal do Soturno, Dona Francisca, Nova Palma, São João do Polêsine, entre outras, na região central do Estado.

Foram da Colônia Vacacaí até o centro de Santa Maria num transporte conhecido como Aranha, uma carroça puxada por cavalos, a melhor forma de chegar ao centro até a chegada do ônibus, anos depois, com duas linhas diárias que permaneceriam como únicas durante muitos anos. Demoraram horas para chegar na cidade; casaram, foram fotografados, comeram e no mesmo dia fizeram o caminho de volta. Raramente voltariam nos próximos anos pra lá, ocupados que estariam com o trabalho no campo e os filhos (4 mulheres e 1 homem). Décadas depois, Josephina, já sem Guerino (que morreria em 1968, aos 51 anos) iria morar na cidade. Uma parte das terras onde viviam ainda são cultivadas por um dos filhos, que hoje vive da produção de soja, a monocultura que a custo de muito investimento externo e agrotóxicos tomou conta das terras sul-riograndenses a partir da década de 1970.

“Entraram ali dentro. O dono da venda estava mudando de ramo e agora representava uma firma. Defensivos agrícolas de todos os tipos, latas novas que tionham caveiras sobre a tinta. Vidros, ampolas, galões, sacos plásticos, caixas, estojos, pulverizadores costais, máscaras, pipetas, misturadores, macacões, luvas coloridas, parafusos dourados, esguichos, bisnagas, baldes, embornais, botas de borracha, bonés. Ele esboçou uma crua ciência sobre todo o lote da mercadoria, excitado, batendo com o nó dos dedos nas latas e indo de uma direção a outra, aturdido como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez. Estavam muito atentos, tocando com muito jeito os objetos, mas ajustavam os bonés nas cabeças e os pés nas botas novas. Era uma concentração química poderosa, de que ainda não sabiam o nome, era um produto, então, mas ele esclarecia que “um tanto disso mais aquilo e é um estrago bárbaro”. Com a faca retirou um lacre de um galão e depois outro e misturou duas coisas em um recipiente e chacoalhou e respingou aquilo no piso para olhares em círculo, alertas, que esperavam acalamar o fervilhar frio e leitoso. Era uma mistura branca, aguada, com aparência viva, girando num bojo de vidro. Ele saiu com o recipiente nas mãos, que fedia, e todos o seguiram. Fora, ele falava agora sem parar como se procurasse uma coisa e por onde ia levava “um tanto disso mais aquilo” erguido na altura do peito. (…) Mais tarde estavam todos envolvendo uma grande figueira cujas velhas raízes estavam a céu aberto. Derramaram nelas o líquido que rapidamente efervesceu e foi se entranhando e clareando os marrons da árvore. A luz da lua mostrava a supresa e a maravilha nos semblantes. Ficaram fazendo rodas em outras árvores, seguiam para onde fosse o vidro com o líquido branco, que fora renovado. Estavam mudos e estranhamente decididos. Quando retornaram à figueira ainda havia uns verdes neça. O experimento estava dando certo. Valia para pequenos e grandes projetos. Desde os canteiros domésticos até a lavoura imensa. Bastava ver o tipo de folha para se saber qual a mistura. Estavam enterrando as exnadas e as capinas, abrindo o sul para a técnica, anônimos, na noite alta, usando suas próprias árvores de sombra para provar a exatidão da química.” Luiz Sérgio Metz, Assim na Terra (p.45-46).

Na cidade do Rio Grande

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 Rio Grande, cidade fundada em 1737 à beira da gigante Lagoa (laguna) dos Patos, uma das quatro primeiras cidades da 1º divisão política-administrativa do Rio Grande do Sul (por D. João VI, em 1809, ao lado de Porto Alegre, Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha), cerca de 300 KM ao sul de Porto Alegre e 200 KM da fronteira com o Uruguai, em Chuy. Cidade histórica e portuária, com um vento forte, barcos atracados, ruas de pedras de séculos, e um ar decadente de horizonte largo que lembra cidades à beira do Rio da Prata, como Colónia do Sacramento, o que na minha memória compõe um cenário que lembra a Santa Maria Onettiana – aliás, não é o Dr. Díaz Grey saindo do bar da esquina borracho, olhando torto para outros homens que ali ficaram, vestidos com seus terno puídos e chapéus defumados em fumaças de cigarro barato?

Mas não é bem de Rio Grande que quero falar nesse relato rápido, mas sim do que me traz aqui. Vim participar do ESUD 2017, XIV Congresso Brasileiro de Ensino Superior a Distância/III Congresso Internacional de Eucação Superior a Distáncia, na FURG. A área da educação, e ainda mais a educação à distância, não é uma que costumo circular, por isso desconhecia o evento. Mas vim aqui para participar de uma mesa, “Caminhos Emergentes da autoria no Ensinar e no Aprender“, com Tel Amiel (Unicamp), e falar dos “10 mitos sobre o acesso aberto ao conhecimento”, um remix mais focado em educação de uma fala que já foi apresentada no Fisl 2016 e na Universidade de Aveiro, em Portugal. Também vou fazer uma roda de conversa sobre cultura livre e a rede de produtoras culturais colaborativas na Maloca Casa Colaborativa, um contato que surgiu a partir do III Encontro SUL. Gosto dessa diversidade: participar de um encontro acadêmico mais tradicional, em salas/auditórios com muitas pessoas, e uma roda de conversa “nas pontas”, com menos gente, sentadas em roda, troca mais olho no olho. Sinto que é uma necessidade minha de falar das “pontas” na academia, e de modo mais teórico/contextual nas “pontas”. Esse talvez não estar totalmente em nenhum dos dois lugares merece outra reflexão depois.

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A fala no ESUD pode ser vista aqui – com direito a interrupção por queda de luz e participação especial da Pirate Box compartilhando arquivos. Já abaixo estão algumas fotos da roda de conversa na Maloca, bem como alguns registros do Cassino, essa praia enorme e das mais ventosas do mundo.

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Notas pós III Encontro SUL das Produtoras Culturais Colaborativas


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Nas últimas semanas estive envolvido na organização do III Encontro SUL das Produtoras Culturais Colaborativas, uma rede que participo desde 2014 e que envolve uma série de pessoas, coletivos e organizações de três regiões do Brasil (norte, nordeste e sul). Dentre muitas ideias fritantes que sempre surgem em um evento como esse, quatro dias de discussões com gente muito interessante de todo o país, separei três pensatas que me vieram após a mesa “Comunicação e Cultura Livre em tempos bicudos”, que ocorreu no dia 5/10, e que foram digeridas pelo meu incosciente nesses 5 dias que separam a mesa desse texto. Segue abaixo, sem me alongar muito em cada uma porque, por hora, só são pensatas mesmo, a serem desenvolvidas em outro momento:

1) Quem termina uma faculdade de jornalismo está, cada vez mais, formando seus próprios projetos, não mais trabalhando no que ainda resta da mídia de massa. A crise de postos de trabalhos no jornalismo dito mainstream pode ser o maior motivo, mas também há outros, como o “apagão” que vive o jornalismo brasileiro desde final de 2013, especialmente a partir das eleições de 2014 e ainda mais depois do golpe, o que faz com que muitxs estudantxs (em especial xs mais críticxs, fatalmente ligado a universidades públicas, mas não só) não queiram mais trabalhar nesses lugares e busquem alternativas. A presença de dois coletivos de jornalistas recém formados e/ou em formação com falas nessa linha, somado à diversas iniciativas que tenho visto em semanas acadêmicas de cursos de comunicação, e ainda outros projetos surgindo (como esse) para ajudar a formar esses novos projetos, endossa essa realidade. Sempre foi assim? Não creio: pelo menos há 10 anos atrás, quando me formei, formar seu próprio veículo e/ou empreendimento era um pensamento praticamente inexistente nas aulas de jornalismo na minha universidade e, arrisco a dizer, em quase todas que conheci. Esse novo cenário ainda não foi assimilado pelas faculdades de comunicação, que, quando falam em empreededorismo em sala de aula, ainda falam de negócios velhos, e de uma forma velha, muitas vezes trazendo aquele professor da administração que nada entende da área da comunicação com seus jargões business que mais cria antipatia do que simpatia pelo que significa empreender. O que leva para a segunda pensata:

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2) Porque inovação ainda, majoritariamente, está relacionada a fins (muito) lucrativos? Por que inovação é mais corriqueiramente associado a um endosso do capitalismo se estamos em plena ascenção de um pós-capitalismo? Na comunicação, em especial, nos programas das raras disciplinas de empreededorismo à bibliografias de ainda mais raros concursos para professores na área, inovação tem excluído ou pouco falado em negócios sociais, associativistas ou cooperativos, ou até mesmo de modelos experimentais como laboratórios de inovação cidadã, medialabs e coletivos colaborativos (problematizo o conceito em outro momento…). O foco dessas disciplinas muitas vezes tem sido ainda em assessorias de imprensa, agências de conteúdo (um outro nome para “comunicaçaõ integrada?”), ou ainda nos veículos caça-cliques e em outros projetos que ignoram ou pouco pensam no desenvolvimento local, nas soluções livres e no pensamento crítico em relação a própria tecnologia – são projetos que, não raro, ficam mais pro lado do marketing digital do que do do jornalismo que busca trazer informação de interesse público para uma dada comunidade. A resposta pras duas perguntas do início desse parágrafo é, claro, a grana. Mas será utopia pensar em fazer comunicação de forma colaborativa, com checagem precisa e atualização mais lenta, sem fins lucrativos (o que não significa não receber pelo que faz e muito menos não ser profissional, mas apenas não visar o lucro como principal fim), e com soluções de código aberto? Talvez. Mas chamo atenção para uma certa necessidade de, nesse momento de transformação dos modelos de fazer e sustentar o jornalismo, ao menos disputar o que tem sido colocado como inovação, de modo a incluir tecnologias sociais como a utilizada na rede de produtoras culturais colaborativas, e outras formas próximas à economia solidária e o cooperativismo.

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3) Processo é importante, porra! Dito de outro modo: os fins justificam os meios? Nesse quesito, costumo citar por aí um causo que aconteceu em um grande encontro da juventude, em Brasília, dezembro de 2015, com gente de todos os cantos do Brasil, organizado pela Secretaria Nacional da Juventude, orgão ligado à Secretaria Geral da Presidência, antes do golpe. Estava como ministrante, junto com Sheila Uberti (FotoLivre), de uma oficina de cobertura colaborativa com ferramentas livres para outros participantes ligados à comunicação. Mostramos softwares livres para edição, tratamento e publicação de fotos, textos e imagens, citando um pouco a questão da privacidade e de segurança da informação com ferramentas antivigilância. As cerca de 30 pessoas que estavam por ali pareciam interessadas e curiosas durante a oficina. Mas quando acabamos, nos reunimos todos numa grande mesa para discutir as pautas do dia e um dos participantes, que esteve presente durante toda a ação, falou: “Agora vamos ao que interessa, depois a gente vê essas amenidades”. Falava da reunião de pauta que ocorreria na sequência da oficina, em que discutimos os conteúdos a serem produzidos durante o evento. A fala, já escutada em versões semelhantes muitas outras vezes, é sintomática da importância que se dá ainda ao produto em nossa sociedade (e especialmente na área da comunicação), e não ao processo. Estávamos em um grupo que discutia os grandes oligopólios de mídia no Brasil, que criticava duramente a cobertura do jornalismo mainstream aos protestos nas ruas, uma cobertura apontada como enviezada, que só via os fatos por um lado (aquele do status quo, de quem dita as regras). E que publicava praticamente 100% de seu conteúdo em redes de grandes monopólios da internet (Google e Facebook), em que todo o processo de produção passava por ferramentas desses grandes grupos (mensageiros como WhatsApp, softwares de edição da Adobe, sistemas operacionais proprietários Windows e Mac). O uso das tecnologias nos processos de produção culturais (e comunicacionais) ainda é visto como uma amenidade. Para a maioria, em especial na comunicação, o importante é que o conteúdo seja relevante, bonito, fácil de fazer e que chegue ao maior número de pessoas, não importando se para isso se utilize caminhos proprietários que tem posturas e posições tão ou mais criticamente condenáveis do que os grandes grupos de comunicação que se critica. E isso não é uma crítica per se, apenas uma constatação. São diversas frentes de batalha que temos nestes tempos brutais que vivemos, e diante delas a maioria das pessoas tem escolhido que a das tecnologias livres não é uma causa urgente. O fim de fazer circular um conteúdo de denúncia em uma dada comunidade é mais importante do que esse conteúdo ser produzido e publicado em software livre.

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Mas existem grupos (utópicos?), como a rede de Produtoras Culturais Colaborativas (e outros tantos), que ainda acham que os processos são importantes, e que ferramentas livres na condução desse processo ainda devem ser, ao menos, consideradas. Que soluções que sejam das pessoas, e não de grande corporações, são fundamentais para a construção de caminhos mais justos e igualitários pra nossa sociedade. Muitos são os desafios dessa opção pelo processo: a dificuldade de se introduzir o germe de autogestão e da responsabilidade de cada um com aquilo que faz e produz é um deles. O pouco alcance que muitas vezes os eventos e conteúdos (os “produtos”) feitos dessa maneira atingem é outro. A crônica falta de dinheiro que, em diversos momentos, especialmente aquele em que os processos democráticos estão em crise (como hoje), é outro. Todos denotam uma característica desse caminho: a lentidão. Colaborar também é insistir, muitas vezes ser chato, dedicar tempo e dinheiro que, em diversos momentos, não se tem, ainda mais no sul global onde nos situamos. Mas ninguém disse que seria fácil, não?

Fotos de Davi Adorna. Disponível no Iteia, espaço de acervo multimídia livre.

 

A busca da memória

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Já de volta ao sul, leio o livro de Samarone Lima, ” O Aquário Desenterrado” (2015). Jornalista e escritor, Samarone é um recente dono de sebo em Olinda, a Casa Azul, onde fizemos o lançamento dos zines do BaixaCultura e uma roda de conversa (registros em foto aqui; relato mais detalhado em breve). Nasceu no Crato, no interior do Ceará, mas habita Recife desde 1987, onde já escreveu sete livros, entre reportagens, crônicas e poesia. Abriu seu sebo na região do Carmo, Cidade Alta de Olinda, no início de 2017, no início da temporada de chuvas do inverno nordestino, e lá tem promovido alguns cursos, sediado algumas peças de teatro, tudo aos poucos, devagar como a vida em Olinda durante um inverno chuvoso sem (tantos) turistas. O sebo tem uma seleção preciosa de livros de ficção e teoria, poucas e boas prateleiras que ocupam as duas salas da frente de um casarão típico daquela região da cidade, com uma estreita face virada para a rua que não sugere os diversos cômodos e o amplo pátio que se extendem ao longo da casa.

Samarone é um cronista dos bons, e em sua página, Estuario, é possível ter uma amostra disso – dos mais recentes, leia, em especial, “Anotações de um dono de sebo em Olinda“, relato de coisas simples que acontecem no seu dia a dia na Casa Azul. Gostei de vários poemas de “O Aquário Desenterrado”, poesias que evocam a memória, a infância, com imagens simples e poderosas, escritas com a precisão de palavras de um bom jornalista de tempos da máquina de escrever, onde apagar era mais custoso. Um dos que mais me interessou se chama “A Busca da Memória”, pg. 44-45, que reproduzo aqui abaixo não na exata diagramação livresca porque ela é impossível na tela, mas ao menos me atendo às quebras de linhas e espaços. Depois do texto, algumas fotos que fiz na Casa Azul e nos arredores, em Olinda.

A BUSCA DA MEMÓRIA

Saio à procura de memórias, palavras
murmúrios.
Encontro escadas, corredores
maçanetas geladas
de lugares que nunca vi.

De nada adianta
esta busca frenética:
tudo está no subsolo.

O esquecimento passa, arando.
O esquecimento anda com uma sacola
cheia de outras sementes
(é aleatório em seus costumes. Ama e esquece. Ama e malquer. Não ama e diz Amor).

Melhor não buscar, Samarone.
Aquieta-te.

Amordaça teu desejo de alcançar
o que já nem sombra é.

Nunca foi.

Deixa que a memória adormeça
que se proteja
como as vítimas do frio.

Apenas se tocando
em gestos impulsivos
em silêncio.

Apenas se aquecendo.

Apenas morrendo.

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Isabelita nos zines

Isabelita nos zines

Jornalismo e cultura hacker (1)

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Vou dar um curso/disciplina de 30h a partir do dia 5/8 na pós em jornalismo digital da PUCRS com o nome “Cultura hacker e jornalismo digital”. Já dou aula na pós faz algum tempo, mas essa vai ser a primeira disciplina onde o foco é a cultura hacker, então quero aproveitar o espaço para testar algumas coisas, claro que com as adaptações necessárias que uma estrutura tradicional de ensino de uma universidade exige.

A ideia é fazer uma disciplina bem mão na massa, que entenda “hackear” num sentido mais amplo e não apenas o vinculado a temas como jornalismo de dados – até porque essa disciplina já existe na pós, então raspar dados e visualizá-los os alunos já sabem (ou vão saber depois). Compartilho aqui o plano de aula para quem quiser dar algum pitaco, ler, criticar, acrescentar referências, ou simplesmente ver, copiar e remixar. A ideia é aproveitar essa experiência para replicar em alguns outros lugares fora da academia também.

Depois relato aqui como rolou a disciplina.

De bem com a memória

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Estou faz uns dias visitando pela primeira vez o Recife, e, entre outras cousas, tem me chamado a atenção a forma leve e autoconfiante que os pernambucanos lidam com sua memória e a do nordeste de modo geral. As principais manifestações culturais (como o frevo, o baião, o maracatu, o São João) são preservadas e tem seus próprios lugares (às vezes museus) de celebração, e mesmo movimentos culturais mais recentes, como o manguebit, parecem ter sua memória citada de forma constante na própria cidade – talvez não com o cuidado estrutural que poderiam ter, mas há de se realçar que estamos passando por um momento de agudo desmonte dos aparatos culturais do Estado Brasileiro, e não é diferente por aqui.

A bandeira de Pernambuco, por exemplo, está espalhada por diversos lados, e muita gente diz que os pernambucanos são bastante bairristas, os recifentes em particular se considerando a “capital do Nordeste”. Mas bairrismo me remete quase de imediato a um ranço impositivo e autoritário que exagera e considera tudo que veio do lugar como melhor, o que acontece frequentemente na cultura gaúcha de onde vivo e que por aqui passa longe – pelo menos nessa minha impressão rápida de uma semana por aqui.

A simples existência de um Museu como o do Homem do Nordeste, mantido pela Fundação Joaquim Nabuco, ligado ao MEC, já atesta essa relação saudável com a memória. É um museu antropológico que organiza exposições contando a história do povo da região a partir de artefatos do dia a dia do nordestino, do sertão ao litoral, do catolicismo de Padre Cícero aos orixás do candomblé. Quando visitei o espaço, estava lá sua exposição permanente do acervo e algumas temporárias, como as do grande xilogravurista J. Borges e uma chamada “Nordeste Mix”, literalmente uma curadoria remix entre tradição e novidade a partir do material do espaço.

Faço um exercício de imaginar um museu do tipo no Rio Grande do Sul. E não consigo pensar em nenhum espaço assim no RS que não traga um forte ranço da tradição desenvolvida pelos CTGs, espaços autoritários que, ao impor “o que pode ser e o que não pode” na tradição gaúcha, acabam por criar a imagem de um gaúcho elitista que hoje pouco tem a ver com aquela que a originou – e que também fez ressoar Brasil afora a imagem de um bairrismo tóxico e conservador que virou piada. Algo que é muito distante da preservação livre, sem tantas imposições, que se faz aqui: a imagem do nordestino estabelecida no museu é muito mais próxima ao povo porque é o povo, daí se tendo uma cultura muito mais inclusiva e livre do que a que é propagada como cultura gaúcha por aí.

Alguns podem alegar que a cultura criada nos CTGs não é a cultura gaúcha, mas um simulacro conservador dela, a “ideologia do gauchismo” como muitos estudiosos dessa área chamam, e que o que ser gaúcho está cada vez mais distante dos CTGs e próximo do dia a dia. Uma identidade mais ampla, portanto, que é endossada pelo resgate de certas proximidades com a cultura platina via música (penso na “Estética do Frio” pensada por Vitor Ramil) mas também na redescoberta do papel dos negros na Revolução Farroupilha e da forte presença do indígena no Estado. Mas essa é uma discussão muito mais complexa, e que as impressões que registro aqui nem tem a intenção de aprofundar, pelo menos por hora.

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Sexta-feira, sentado no parque

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Sexta-feira, 16h28, estou no Parque Marinha do Brasil, em Porto Alegre, sentado na grama & encostado numa árvore, de frente para o Guaíba. Os carros chacoalham rápido na avenida que separa o parque da orla, o sol começa a descer e refletir nas águas do lago-rio. Começo a acalmar a mente para meditar e, depois, ler um livro para preparar uma aula. Quando o turbilhão de pensamentos começa a tranquilizar, um caminhão furgão branco passa rápido na avenida em frente. Do lado do acompanhante, um homem põe a cabeça para fora da janela e grita:
_ VAI TRABALHAR VAGABUNDO! DEIXA DE FICAR AÍ SENTADO ESSA HORA. VAI TRABALHA!
Eu rio.

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Diário da tese (21): a versão final e o pós-tese

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Passados dois meses e quase meio da defesa, eis que está disponível no LUME (sistema de biblioteca da UFRGS) a versão da tese entregue para a biblioteca e que será, definitivamente, a prova cabal de que defendi a tese e posso ser considerado um “doutor” pelos sistemas acadêmicos. Boa parte do material que usei, assim como alguns fichamentos, está disponível nesta página também. Passado esse tempo, já vejo o trabalho com outros olhos. Ainda olhos viciados, mas menos do que antes, com um início de distanciamento do processo que já me faz ver com melhor nitidez os defeitos e as qualidades da tese.

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Ajudou a ter esse olhar, também, duas ocasiões em que estive falando do trabalho na Unisinos, a primeira na aula de Ronaldo Henn e Maria Clara Aquino Bittencourt na pós-graduação (a foto que abre o post é de lá, feita pelo Ronaldo Henn), uma semana depois da defesa; a segunda no VI Seminário Aberto de Jornalismo da mesma pós, numa mesa a debater “Práticas e Novos Modelos de Jornalismo Digital” com Leandro Demori (Medium/Piauí) e Daniela Bertocchi. Uma parte de minha fala foi transmitida ao vivo via Facebook, e um relato de Ronaldo resumindo o evento inteiro foi publicado no Medium.

Um sentimento muito presente pós-defesa é o de um certo alívio, oriundo do clichê “missão cumprida”. Outro, talvez mais meu do que de muitos recém-doutores, é o cansaço da academia: do sistema hierárquico, da cobrança de produtividade sem relevância, do diálogo às vezes viciado de formalidades que revelam mais falsidade do que honestidade. Felizmente, nas duas ocasiões na Unisinos, o diálogo foi produtivo e sincero, mas ainda estou num processo de afastamento desse universo e (re) aproximação de outros mais práticos. Busca pessoal mesmo, de ir para outras frentes que me interessam mais e que, por motivos tortos, nunca entraram na linha de frente de minha vida acadêmica.

Aos que aqui me acompanham, convido também a visitar o BaixaCultura, que está sendo reformulado para virar um laboratório online de cultura livre e (contra) cultura digital. Não é uma novidade em si, já que o Baixa vem sendo esse espaço experimental que caracteriza um laboratório já faz uns bons anos, mas agora isso vai estar mais explícito. E também o Enfrenta, projeto de mapeamento de coletivos espanhóis que participei em janeiro e fevereiro deste ano – quando a tese estava sendo revisada, aliás – e que, nestes meados de 2017, está em sua 2º etapa, de realização dos produtos da pesquisa. Com esses dois projetos e outros embrionários, busco criar caminhos, bem como fortalecer os já existentes, que me tragam algumas respostas sobre a viabilidade (“sustentabilidade”) de modos de vida alternativos,  uma busca de autonomia guiada pelas ideias da cultura livre e da economia solidária. Também é um teste de criação de caminho para buscar uma resposta bem particular: quais são as possibilidades de ser um “doutor” sem ser professor em tempo integral numa universidade, pública ou particular, tal como conhecemos a universidade hoje? É viável, em termos de sobrevivência financeira, ensinar e aprender com profundidade em sistemas que fujam do tradicional instituído na academia, mesmo que em alguns pontos não deixem de dialogar com ela?

Algumas pessoas tem dito e mostrado que sim, outras tem investigado bastante sobre isso (veja o Lab21), e eu tenho tentando entender um pouco melhor como se dão estes projetos, de doutorados informais à Escola da Ponte (veja essa entrevista com José Pacheco, um dos criadores da Escola), da Nuvem ao laboratórios de inovação cidadã (como o brasileiro LabxSantista, criado pelo Instituto Procomum). Como disse num post anterior, com a catástrofe ambiental sendo cada vez mais uma realidade, com a “Intrusão de Gaia” (termo de Isabelle Stangers) nos fazendo perder todas as referências e com a chegada do Antropoceno, essa era geoológica que só deverá dar lugar a uma outra muito depois de termos desaparecido da face da terra, como diz Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski (em “Há Mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins”, 2014), entendo também a busca de espaços de aprendizagem alternativos aos que existem hoje como fundamental para nossa sobrevivência enquanto espécie neste planeta.

Não perco totalmente a relação com a universidade porque acredito que haja uma possibilidade (pequena) de hackear ela por dentro. E, também, ainda dou aulas esporádicas de narrativas jornalísticas digitais em duas especializações, na UCS e na PUCRS, e nesta última começo no semestre que vem uma disciplina chamada “cultura hacker e jornalismo digital” que quero que seja um experimento de uma educação mais próxima à iniciativas que listo acima. Reconheço a Universidade como, mais do que produtora, um espaço de normatização e legitimação sistêmica do conhecimento, e o contato com ela é importante. Mas é certo que há muita vida e coisas a fazer também fora da universidade, não é mesmo?

 

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La caníbal, em Gràcie, Barcelona, “una cooperativa de trabajo asociado sin ánimo de lucro que quiere contribuir a la transformación radical -un horizonte anticapitalista, (trans) feminista y descolonizado”. Uma das diversas excelentes livrarias-cooperativas de guerrilha criada no vácuo da crise de 2011 na Espanha, com livros/zines/revistas de ativismos, feminismos, arte, ficção, histórias, anarquismos, filosofía… Periódicos de cooperativismo e encontros sobre os temas das estantes também compõem o clima. Num dos dias em que fomos lá, em janeiro de 2017, estava pra começar um encontro de mulheres sobre maternidade. Dalí veio, entre outras cosas, “Cincuenta presentimientos”, livro com os pressentimentos (intervenções provocadoras en las calles) do coletivo catalão Espai In Blanc. Fotos de janeiro de 2017.

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Re-habitar de um “jeito antigo”

 

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Quando me formei em jornalismo pela UFSM em 2007, um dos presentes que ganhei foi um livro chamado “A Nova Visão, de Blake aos beats”, de Michael McClure. Na época, o livro me despertou mais atenção pelo beats da capa do que por qualquer outra coisa: havia sido durante a faculdade leitor assíduo dos romances de Kerouac, e conhecia alguma coisa de Ginsberg, Burroughs, Gregory Corso, Neal Cassady (o Dean Moriarty de On the Road) e do autor do livro, Michael McClure. O amigo que me deu o livro sabia desse meu interesse nos beats, e pensando nisso me presentou com “A Nova Visão”, uma coletânea de ensaios e poemas traduzidos para o português por Daniel Bueno, Lúcia Leite e Sérgio Cohn, também editor do livro, na Azougue.

McClure não me bateu de imediato: sua busca por uma poesia mamífera (e não só humana), suas sacadas ecológicas, biológicas e sua descrição de animais, habitats, o pendor para a história e a antropologia, as narrativas simbólicas do lobo não foram compreendidos por mim naquele tempo. Não eram os beats que havia conhecido na leitura que havia feito de Kerouac – Os Vagabundos Iluminados, Tristessa, Cidade Pequena, Cidade Grande e sobretudo On the Road – de estrada, liberdades, caronas, parceria e viagens de todos os tipos, embora McClure estivesse nessas viagens também e na clássica leitura na Six Gallery em 1955, marco inicial do que se popularizou como “geração beat”. Durante alguns anos, enquanto folheava de maneira muito esporádica “A Nova Visão”, visitava outro livro da mesma coleção da Azougue em uma livraria na cidade onde morava, buscando, hoje sei que secretamente, cotejar McClure com este outro livro e ver porque aqueles poemas e ensaios sobre montanhas, fogueiras e animais eram temas de escritores “beats”. Frequentei a livraria por anos e folheava sempre o mesmo exemplar, que já estava um tanto gasto e nem novo mais parecia, até que em 2010 tomei a coragem de comprá-lo, mesmo que fosse usado (talvez só por mim).

O livro se chamava “Re-Habitar“, ensaios e poemas, de Gary Snyder, outro escritor que se tornou famoso com a geração beat, que participou da leitura de 1955, das viagens (inclusive como personagem dos livros de Kerouac, em especial o “Japhy Ryder de “Vagabundos Iluminados”) e também escrevia de animais, ecologia, povos ameríndios e fogueiras. Em 2010, “Re-Habitar” me bateu melhor que “A Nova Visão”, muito por conta de seus ensaios, que se relacionavam com uma na época crescente visão que tinha de que estamos fodidos, enquanto humanos, à caminho da extinção de nosso planeta. Durante os anos seguintes, enquanto uma certa visão ecológica se amadurecia em mim, mantive o livro por perto em diferentes cidades onde morei, como uma espécie de farol ancestral que me servia de iluminação para saber para onde estamos indo –  e, principalmente, de onde viemos e quem são aqueles que estavam aqui quando nem nos conhecíamos enquanto pessoas, estados, nações. Fui atrás de algumas entrevistas com o autor, e passei a admirá-lo ainda mais quando ouvi o que falava, como falava e desde que lugar falava sobre temas como ecologia, zen budismo, integridade, ética, relação com os povos ameríndios ancestrais –  essa entrevista feito pelo escritor e poeta brasileiro Rodrigo Garcia  Lopes, em 2009, é especialmente interessante. Descobri que vivia (e ainda vive, aos 87 anos)  em um rancho que ele mesmo construiu nas montanhas de Sierra Nevada, na Califórnia, que havia passado 10 anos vivendo no Japão como um monge zen-budista, que havia ganho o prêmio Pullitzer por “Turtle Island” (1974), que é professor émerito da Universidade da California – Davis. Tornou-se, pra mim, um raro modelo de integridade de vida, arte e ativismo.

Em 2017, tenho “Re-habitar” ainda mais perto de mim. Com a catástrofe ambiental sendo cada vez mais uma realidade, com a “Intrusão de Gaia” (termo de Isabelle Stangers) nos fazendo perder todas as referências e com a chegada do Antropoceno, essa era geoológica que só deverá dar lugar a uma outra muito depois de termos desaparecido da face da terra, como diz Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski (em “Há Mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins”, 2014), entendo mais dos apontamentos de Snyder e de sua antevisão disso tudo que hoje vivemos.  Sua forma de falar de poesia, antropologia, história e biologia e encadear ideias densas em frases simples nos toca na raiz daquilo que nos faz humanos. Sua escrita, tanto nos poemas quanto nos ensaios, evoca séculos de ancestralidade, como se se ao lê-lo viajássemos pelas florestas e pradarias ao lado de um xamã – Snyder – que apresenta cada ser vivo do lugar com calma e cuidado, explicando de onde vem, para que servem e como vivem em rede com todos que ali habitam.

É do livro que trago alguns trechos de “Re-Habitação”, ensaio que se baseia numa palestra dada na Conferência sobre Rehabitação na Escola de San Juan Ridge, em agosto de 1976, e publicada originalmente no livro “The Old Ways“, editado pela City Lights (de seu amigo e outro beat que descobri tardiamente, Lawrence Ferlinghetti) em 1977. O texto articula ecologia, história, poesia e memória pessoal para falar da necessidade de nós, seres humanos, nos tornarmos re-habitantes, seres que possam conhecer um pouco daquele “Jeito Antigo” dos habitantes de verdade de um terrritório, que estão ali há séculos, milênios. Um jeito, ele ressalta, que “está fora da história e é, para sempre, novo”, na tradução em português  de Luci Collin.

Observando toda as diferentes árvores e plantas da floresta, um reflorestamento de Abetos Douglas e mais as pastagens que compunham o universo da minha infância, eu percebi que meus pais eram limitados num certo tipo de conhecimento. Eles sabiam dizer “Isso é um Abeto Douglas, aquilo é um cedro, isso é uma samambaia”, mas eu percebi uma sutileza e uma complexidade naquelas matam que iam muito além de uns poucos nomes. Quando criança falei com o velho índio Salish algumas vezes, ao longo dos anos, quando ele fazia as visitas – então, de repente, ele nucna mais voltou. Eu percebia o que ele representava, o que ele sabia,e o que isto significava para mim: ele sabia, melhor do que qualquer outra pessoa que eu tivesse conhecido, onde eu estava. Eu não tinha nenhuma noção de uma herança de branco americano ou europeu que oferecesse uma identidade; eu me definia pela ligação com o lugar. Mais tarde também compreendi que “língua inglesa” é uma identidade – e depois, através dos livros, recebi a visão cultural e histórica completa – mas nunca esqueci ou abandonei aquele princípio, o “onde” do “quem somos nós?. (p.242)

O propósito de toda essa vivência e estudo não é a auto-realização e o auto-conhecimento? Como o conhecimento do lugar nos ajuda a conhecer o Eu? A resposta, exposta de forma simples, é que todos nós somos serem compostos, não só fisicamente, mas intelectualmente, cuja característica individual e exclusiva, que nos identifica, é uma forma ou estrutura particular que muda constantemente no tempo. Não há nenhum “eu” a ser encontrado nisso e, ainda assim, bastante estranhamente, há. Parte de você está lá fora esperando para ser incorporada e outra parte de você está a seu lado, e o “agora” do momento sempre presente sustenta todos os pequenos eus transitórios em seu espelho. (p.247)

Não acontece apenas da integridade da terra norte-americana nativa estar ameaçada, ou as florestas e parques nacionais: é toda a terra que está sob uma mira, e qualquer pessoa, ou grupo de pessoas, que tentar permanecer num lugar e fazer bem alguma coisa, tempo suficiente para poder dizer, “eu realmente amo e conheço este lugar”, se encontra na posição de ser penalizado. A economia disso trabalha de forma que qualquer um que se atire à oportunidade de lucro rápido é recompensado – fazer agricultura adequada não corresponde a amontoar chances mais lucrativas – a correta administração de florestas ou de jogos significa fazer as coisas tendo em mente o futuro distante – e o futuro não pode nos apagar por isso de imediato. Fazer as coisas corretamente significa viver considerando que seus netos também desejarão estar vivos nesta terra, continuando o trabalho que nós estamos fazendo agora e com prazer intensificado”.  (p.248)

Na primavera passada eu vi velhos fazendeiros no Kentucky que pertencem a um outro século. Eles são habitantes de verdade; eles assistem ao mundo que eles conhecem se desmoronar e evaporar a olhos vistos, em face a uma lógica diferente que declara: “Tudo o que você sabe e faz, e o modo que você faz isto, não significa nada para nós”. Quão maior não será a dor e a perda das elegantes habilidades por parte das remanescentes culturas primitivas e não-brancas do quarto mundo – que podem econhecer as propriedades especiais de uma determinada planta, ou como se comunicar com os golfinhos – habilidades que o mundo industrial pode nunca mais recuperar. Não que esses conhecimentos especiais e intrigantes sejam o ponto em questão: o que está perdido é o sentido do sistema mágico, a capacidade para ouvir a canção de Gaia naquele lugar. (p.248)

Re-habitacional se refere ao ínfimo número de pessoas que deixam as sociedades industriais (tendo coletado ou desperdiçado os frutos de oito mil anos de civilização) e então começam a retornar à terra, de volta ao lugar. Isso surge para alguns com a percepção racional e científica das interconexões e dos limites em nível planetário. Mas as demandas reais de uma vida comprometida com um lugar, e que se mantém com um pouco da energia solar das plantas que se concentram naquele lugar são, física e intelectualmente, tão intensas que essa é também uma escolha moral e espiritual. (p.249)

gary snyder

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