Vitório

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Duas semanas atrás Vitório Uberti, avô da Sheila (minha compnaheira), fez 90 anos. Gosto de ouvir histórias e Vitório gosta de contar; fechamos uma boa dupla desde que nos conhecemos. Homem simples de origem italiana, Vitório sempre teve uma vida “comum” no interior do RS, trabalhador que saiu do campo pobre para buscar trabalho na cidade, onde se achou na área de mecânica de carros e equipamentos diversos e com isso construiu sua família e sua casa, em Bento Gonçalves. A riqueza de detalhes e da construção narrativa que ele adquiriu de episódios que outros achariam banais é o que fazem dele um excelente contador de causos. Conheci mundos e redescobri outros do interior ouvindo as histórias dele; aprendi muito sobre mecânica, geografia, história, carros e sobre o valor de pequenas coisas como uma música tocada no rádio, amizades fiéis, uma ressaca bem vivida – perdoem o clichê, mas felicidade é construída dessas pequenas coisas.

Segunda-feira 20/8 à noite Vitório morreu. Sempre difícil buscar palavras para dar conta desse mistério tão grande que sempre será a morte, mas lembrei do presente que eu e Sheila damos a ele nos 90: um zine com uma de suas muitas histórias. Chamamos de “Causos do Vitório” e distribuímos como lembrança a todxs os presentes na festa. O texto abaixo é uma pequena biografia que está na publicação, na foto localizado na mala com outros presentes e lembranças de Vitório; a segunda foto foi quando mostrei a ele o zine, agora sei que uma de suas últimas leituras, ele que nos últimos anos lia muito, livros, revistas, jornais, tudo que caía em suas mãos.

“Vitório Uberti nasceu em 9 de agosto de 1928 no interior de Viadutos, pequena cidade ao norte do Estado às margens do rio Uruguai, na divisa do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Saiu de casa aos 18 anos e passou a trabalhar por décadas com mecânica de diversos equipamentos, especialmente máquinas e tratores utilizados na construção de estradas. Trabalhou em cidades como Montenegro, Porto Alegre, Novo Hamburgo, Rio Pardo, Nova Prata, Campos Novos e em acampamentos temporários criados na construção de estradas, como a que liga Santa Cruz do Sul a Rio Pardo (RS)e a Br 116, no trecho chamado Rio-Bahia. É apaixonado por carros e mecânica; teve quatro dessas paixões em forma de carro: uma “Fubica” Chevrolet 32, uma DKW, um Corcel I e um Voyage. Foi morar em Bento Gonçalves em 1979 e ali construiu sua casa, localizada no bairro São Francisco, onde vive até hoje com sua companheira, Angelina De Bona Uberti, de 84 anos. Vitório cumpriu poucos anos de estudos formais, mas tem experiência e habilidade com tanto tipo de trabalho lógico e manual que deixa muito “doutor” formado em universidades no chinelo, como comenta sua neta Sheila Uberti: “Me ensinou e incentivou a usar as ferramentas da oficina, a trabalhar com madeira, com fiação, a pensar em soluções para restaurar cabo de panela e a fazer esquema de iluminação – só pra listar por alto. Do it yourself muito bem feito, se assim quiserem chamar.” Acompanha diariamente o noticiário na rádio e no jornal, lê livros e revistas com frequência e é um contador de causos de mão cheia – lembra de muitas passagens de sua vida em detalhes e é uma ótima parceria para quem gosta de ouvir histórias por horas. Esta publicação nasceu em homenagem aos 90 anos de Vitório.”

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A busca da memória

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Já de volta ao sul, leio o livro de Samarone Lima, ” O Aquário Desenterrado” (2015). Jornalista e escritor, Samarone é um recente dono de sebo em Olinda, a Casa Azul, onde fizemos o lançamento dos zines do BaixaCultura e uma roda de conversa (registros em foto aqui; relato mais detalhado em breve). Nasceu no Crato, no interior do Ceará, mas habita Recife desde 1987, onde já escreveu sete livros, entre reportagens, crônicas e poesia. Abriu seu sebo na região do Carmo, Cidade Alta de Olinda, no início de 2017, no início da temporada de chuvas do inverno nordestino, e lá tem promovido alguns cursos, sediado algumas peças de teatro, tudo aos poucos, devagar como a vida em Olinda durante um inverno chuvoso sem (tantos) turistas. O sebo tem uma seleção preciosa de livros de ficção e teoria, poucas e boas prateleiras que ocupam as duas salas da frente de um casarão típico daquela região da cidade, com uma estreita face virada para a rua que não sugere os diversos cômodos e o amplo pátio que se extendem ao longo da casa.

Samarone é um cronista dos bons, e em sua página, Estuario, é possível ter uma amostra disso – dos mais recentes, leia, em especial, “Anotações de um dono de sebo em Olinda“, relato de coisas simples que acontecem no seu dia a dia na Casa Azul. Gostei de vários poemas de “O Aquário Desenterrado”, poesias que evocam a memória, a infância, com imagens simples e poderosas, escritas com a precisão de palavras de um bom jornalista de tempos da máquina de escrever, onde apagar era mais custoso. Um dos que mais me interessou se chama “A Busca da Memória”, pg. 44-45, que reproduzo aqui abaixo não na exata diagramação livresca porque ela é impossível na tela, mas ao menos me atendo às quebras de linhas e espaços. Depois do texto, algumas fotos que fiz na Casa Azul e nos arredores, em Olinda.

A BUSCA DA MEMÓRIA

Saio à procura de memórias, palavras
murmúrios.
Encontro escadas, corredores
maçanetas geladas
de lugares que nunca vi.

De nada adianta
esta busca frenética:
tudo está no subsolo.

O esquecimento passa, arando.
O esquecimento anda com uma sacola
cheia de outras sementes
(é aleatório em seus costumes. Ama e esquece. Ama e malquer. Não ama e diz Amor).

Melhor não buscar, Samarone.
Aquieta-te.

Amordaça teu desejo de alcançar
o que já nem sombra é.

Nunca foi.

Deixa que a memória adormeça
que se proteja
como as vítimas do frio.

Apenas se tocando
em gestos impulsivos
em silêncio.

Apenas se aquecendo.

Apenas morrendo.

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Isabelita nos zines

Isabelita nos zines