Diário da tese (7): Liberando o bruto

Você sabe que, na internet, tudo que você faz pode ser rastreado e agregado. Os sites que acessados, os posts que você faz em redes sociais, as “curtidas”, compartilhadas e qualquer outro movimento realizado na World Wide Web, através de um navegador como o Chrome ou o Firefox, ou através de aplicativos baixados para seu celular/tablet/etc, geram dados que podem ser rastreados (se você usa criptografia isso é um pouco mais difícil). Reunidos e combinados, estes dados podem dizer muita coisa sobre a sua vida e a vida humana e não-humana no planeta, e é isso que se tem chamado de big data.

Nas investigações acadêmicas, a possibilidade de rastrear e agregar as informações possibilita transformações consideráveis no jeito de se fazer pesquisa. Bruno Latour, no texto “Beware, your imagination leaves digital traces” (2007) lembra que, quando nossos hábitos cotidianos (como comprar um livro) são atravessados pela tecnologia digital e pela internet, as diferenças entre os âmbitos social, econômico e psicológico de nossas vidas são apagados: “The ancient divide between the social on the one hand and the psychological on the other was largely an artefact of an asymmetry between the traceability of various types of carriers: what Proust’s narrator was doing with his heroes, no one could say, thus it was said to be private and left to psychology; what Proust earned from his book was calculable, and thus was made part of the social or the economic sphere. But today the data bank of Amazon.com has simultaneous access to my most subtle preferences as well as to my Visa card. As soon as I purchase on the web, I erase the difference between the social, the economic and the psychological“.

Pensando também nisso, Tommaso Venturini, pesquisador que trabalha com Latour no Sciences Po em Paris, desenvolveu em dois artigos uma metodologia, chamada Cartografia das Controvérsias, onde o rastrear e agregar informação na rede pode ser usado para expor toda a documentação utilizada numa investigação científica. Ao criar um site-repositório, o pesquisador disponibiliza todas (ou quase todas, porque algumas podem não ser possíveis de trazer) as informações que utilizou para construir sua pesquisa, em especial aquelas que são digitalizadas e que podem ser rastreadas porque foram publicadas na internet.

A documentação do trabalho realizado possibilita reverter as simplificações inevitáveis que o pesquisador teve que fazer ao transformar seus dados em um produto, geralmente uma peça escrita como um artigo ou uma tese. Graças ao ambiente hipertextual quase infinito da internet, podemos disponibilizar não só os resultados como cada passo da pesquisa, encorajando o reuso dos dados e das técnicas de pesquisa por outros pesquisadores, ou simplesmente deixando transparente os processos de edição realizados ao dar a possibilidade de confronto entre o que foi pesquisado e o que foi (vai ser) publicado.

Inspirado por Venturini e Latour, e também pela filosofia do software livre na qual sou entusiasta, resolvi eu também criar um repositório online das informações de minha pesquisa. A ideia é a de expor o bruto dos dados para que seja possível ver as escolhas simplificadoras que tive de fazer ao longo do tempo para por as informações em um formato que se convencionou chamar de “tese”, este trabalho final realizado após 3 ou 4 anos de um curso de doutorado (no Brasil). Também disponibilizo como forma de potencializar um reuso destas informações que obtive no processo de feitura da investigação, caso alguém tenha interesse nisso.

Minha pesquisa não é feita por um grande laboratório com muitos investigadores nem financiada pela União Européia, como foi o caso da que baseou os artigos de Venturini – o site com o bruto da pesquisa continua na rede, mesmo ela tendo sido finalizada em 2010. Mas este trabalho, como todos, é coletivo, feito com a contribuição milionária de múltiplos erros (Oswald!) e de muitos artigos/livros/comentários disponíveis na rede. Nada mais justo que devolver um pouco a esta mesma rede que está possibilitando ele ser feito.

Vou disponibilizar o bruto nesta página, e dividido em quarto partes: projetos, fichamentos/referências, matérias na mídia e dados de pesquisa. A primeira são os projetos que fiz ao longo dos 4 anos de doutorado, sendo o primeiro o utilizado na seleção, em 2013, e o segundo o defendido na qualificação, ano passado. A segunda são as referências que estou utilizando para construir o trabalho, e os fichamentos que estou produzindo destes textos, muitos em arquivos algo caóticos, como é o caso dos dois textos de Venturini, disponibilizado nessa primeira leva. Aliás: nem todos os textos faço o fichamento, e alguns faço só de certos capítulos e trechos de determinadas obras, mas disponibilizo igual todos que conseguir. Na terceira parte trago os links das muitas matérias e textos publicados em mídias diversas na internet. Por fim, na última parte vou disponibilizar as entrevistas e os diários de campo das observações realizadas, se os entrevistados assim permitirem, e a coleta de dados que fiz na rede para analisar os momentos que estou investigando para a tese.

A ideia é trazer este material na medida em que ele vai sendo produzido, espero que semanalmente nestes próximos (e últimos!) meses de trabalho para a entrega da tese. Alguns artigos que já publiquei e estou a publicar por aí estão na seção Publicações deste site, e quem tiver afim de conferir verá que muita coisa da tese virá deles também.

Tá lá: INVESTIGAÇÃO DE DOUTORADO.

Diário da tese (6): voltar do campo e escrever

Voltar do campo, escolha das “controvérsias”, definir prazos e capítulos, sobre o fazer da tese: esses todos eram os temas pra escrever na volta do diário da tese. Mas justo estas quatro coisas foram os motivos principais pelos quais este diário está há quatro meses sem atualização. O trabalho de chegar do campo, dar o tempo necessário para se distanciar do diário para então voltar a ele e (re) ver a pesquisa de modo a encaminhar a escrita da tese; de, a partir daí, retrabalhar a metodologia sob a perspectiva de que ela é uma construção ao longo do tempo e de acordo com o objeto e não o contrário; e, finalmente, o contexto político brasileiro, que fez de março um mês movimentado de protestos em ambos os “lados” do espectro político nacional e de abril, maio e junho meses de Impeachment, situação que modificou (e potencializou o alcance) das ações da Mídia Ninja, o objeto analisado. Todos foram fatos para este diário se atrasar e só vir aqui, agora, nesse momento, também como um descarrego – “faça esse post que está no rascunho faz meses e depois reorganiza o site e o diário conforme tu planejou!”.

Aí está.

[E pra não ficar só nisso: terminei o fichamento dos dois textos de Tommaso Venturini que definem a Cartografia das Controvérsias, uma metodologia criada por Bruno Latour e desenvolvida por Venturini como uma espécie de versão “prática” da Teoria Ator-rede . São os artigos: Diving in Magma: How to Explore controversies with Actor-Network Theory (2009) e Building on faults: how to represent controversies with digital methods (2010), escritos na sequência para uma mesma revista, Public Understanding of Science. O trabalho apresenta como identificar e explorar as controvérsias (1) e representá-las digitalmente (2).

Nesta parte dois, Venturini faz uma interessante proposta de deixar todo o material utilizado na pesquisa de forma aberta, na rede, em um site-controvérsia – que no caso dele, foi um projeto coletivo encabeçado pelo Médialab do Sciences Po, de Paris (onde Latour e Venturini trabalham), chamado MACOSPOL (MApping COntroversies in Science and techonology for POLitics). Ele embasa sua escolha de diversas formas teóricas que não vou citar agora aqui, mas dois pontos são essenciais: o fato de, na internet, tudo pode ser rastreado e agregado; e a reversibilidade, nas palavras de Venturini: “Like Theseus, scientists wouldn’t wander the maze of representation without a thread to follow back. By maintaining the reversibility of aggregation, researchers assure themselves (and their peers) the possibility of climbing back up their formalizations and then trying other descents“(p.7).

Baseado nisso é que, nas próximas semanas, vou trazer algumas novidades pra esse diário.]