Sobre uma foto e o interior do sul

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Essa foto foi feita em 24 de julho de 1943, data do casamento dos meus avós maternos Josephina e Guerino Feltrin, que estavam no coreto da Praça Saldanha Marinho, centro de Santa Maria. Nesse dia, os dois com vinte e poucos anos (ela 21, ele 25), saíram cedo de onde moravam, a Colônia Vacacaí (hoje distrito de Santa Flora, cerca de 30 Km ao sul de Santa Maria), e foram para o cartório mais próximo casar. Com suas mais caras roupas, sentaram-se num banco da praça depois do cartório e pediram um registro ao fotógrafo lambe-lambe. 74 anos depois encontrei esse registro na casa de uma tia, a que nasceria 9 meses depois desse momento.

Ambos eram filhos e netos de agricultores, brutos imigrantes italianos que falavam mais em dialeto (o vêneto) do que em português. Trabalharam desde cedo nas roças de fumo, milho, feijão, trigo e tudo (que poderia dar nas produtivas terras que seus avós receberam (não há registros disso, mas é o que acontecia) do governo brasileiro como recompensa para vir para o interior do Brasil. Sabe-se que, após a Abolição da Escravatura (1888), os agricultores e fazendeiros brasileiros optaram pela mão-de-obra de origem europeia, em vez de de integrarem os ex-escravos ao mercado de trabalho. No caso do interior do Rio Grande do Sul, o governo da época estimulou a imigração também como forma de “ocupar” a região. Santa Maria faria parte da 4º colônia de imigração italiana, que hoje compreende cidades como Faxinal do Soturno, Dona Francisca, Nova Palma, São João do Polêsine, entre outras, na região central do Estado.

Foram da Colônia Vacacaí até o centro de Santa Maria num transporte conhecido como Aranha, uma carroça puxada por cavalos, a melhor forma de chegar ao centro até a chegada do ônibus, anos depois, com duas linhas diárias que permaneceriam como únicas durante muitos anos. Demoraram horas para chegar na cidade; casaram, foram fotografados, comeram e no mesmo dia fizeram o caminho de volta. Raramente voltariam nos próximos anos pra lá, ocupados que estariam com o trabalho no campo e os filhos (4 mulheres e 1 homem). Décadas depois, Josephina, já sem Guerino (que morreria em 1968, aos 51 anos) iria morar na cidade. Uma parte das terras onde viviam ainda são cultivadas por um dos filhos, que hoje vive da produção de soja, a monocultura que a custo de muito investimento externo e agrotóxicos tomou conta das terras sul-riograndenses a partir da década de 1970.

“Entraram ali dentro. O dono da venda estava mudando de ramo e agora representava uma firma. Defensivos agrícolas de todos os tipos, latas novas que tionham caveiras sobre a tinta. Vidros, ampolas, galões, sacos plásticos, caixas, estojos, pulverizadores costais, máscaras, pipetas, misturadores, macacões, luvas coloridas, parafusos dourados, esguichos, bisnagas, baldes, embornais, botas de borracha, bonés. Ele esboçou uma crua ciência sobre todo o lote da mercadoria, excitado, batendo com o nó dos dedos nas latas e indo de uma direção a outra, aturdido como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez. Estavam muito atentos, tocando com muito jeito os objetos, mas ajustavam os bonés nas cabeças e os pés nas botas novas. Era uma concentração química poderosa, de que ainda não sabiam o nome, era um produto, então, mas ele esclarecia que “um tanto disso mais aquilo e é um estrago bárbaro”. Com a faca retirou um lacre de um galão e depois outro e misturou duas coisas em um recipiente e chacoalhou e respingou aquilo no piso para olhares em círculo, alertas, que esperavam acalamar o fervilhar frio e leitoso. Era uma mistura branca, aguada, com aparência viva, girando num bojo de vidro. Ele saiu com o recipiente nas mãos, que fedia, e todos o seguiram. Fora, ele falava agora sem parar como se procurasse uma coisa e por onde ia levava “um tanto disso mais aquilo” erguido na altura do peito. (…) Mais tarde estavam todos envolvendo uma grande figueira cujas velhas raízes estavam a céu aberto. Derramaram nelas o líquido que rapidamente efervesceu e foi se entranhando e clareando os marrons da árvore. A luz da lua mostrava a supresa e a maravilha nos semblantes. Ficaram fazendo rodas em outras árvores, seguiam para onde fosse o vidro com o líquido branco, que fora renovado. Estavam mudos e estranhamente decididos. Quando retornaram à figueira ainda havia uns verdes neça. O experimento estava dando certo. Valia para pequenos e grandes projetos. Desde os canteiros domésticos até a lavoura imensa. Bastava ver o tipo de folha para se saber qual a mistura. Estavam enterrando as exnadas e as capinas, abrindo o sul para a técnica, anônimos, na noite alta, usando suas próprias árvores de sombra para provar a exatidão da química.” Luiz Sérgio Metz, Assim na Terra (p.45-46).