Diário da tese (9): o pioneiro Fleck

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As duas aulas finais da disciplina de Antropologia da Ciência que fiz neste primeiro semestre de 2016 foram dedicadas a um autor hoje conhecido na filosofia da ciência/sociologia do conhecimento e nos estudos de ciência e tecnologia (STS), mas desconhecido fora daí: o médico Ludwik Fleck. Hoje ele é considerado um dos pioneiros destas áreas, referência bastante citada na antropologia, sobretudo nos estudos relacionados a saúde, e a influência de sua obra se espalha por muitas das ideias da TAR. Mas nem sempre foi assim, e este post é um pouco para contar a sua história, ainda pouco conhecida.

Em 1935, Ludwik Fleck trabalhava no departamento de medicina interna do hospital de Lviv, sua cidade natal, na Ucrânia quase fronteira com a Polônia. Atendia e exercia funções administrativas durante à tarde, e, pela manhã, se debruçava em leituras de filosofia, sociologia e história da ciência, estimulado pela formação interdisciplinar que teve, como médico, no ambiente efervescente em ideias da universidade de Lviv. Desde 1927 também publicava artigos acadêmicos na área da epistemologia da ciência, “sociologizando” sua área de atuação, a medicina, ao percebê-la como uma atividade coletiva complexa, em que fatores externos a certas descobertas médicas, como o contexto histórico em que foram produzidas, o sistema de ideias vigente e o caráter coletivo de qualquer saber, tinham extrema importância e, portanto, deveriam ser estudados com mais dedicação do que à época se fazia.

As ideias trabalhadas por Fleck teriam seu clímax com o livro “Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico“, publicado em alemão por uma editora de Basiléia, Suiça, em 1935. Numa linguagem não dirigida a especialistas, o livro investiga um caso importante da história da medicina – o desenvolvimento do conceito de sífilis – para, a seguir, tecer suas considerações epistemológicas sobre a estrutura sociológica do saber. Para Fleck, o conhecimento científico, como o conceito da sifílis, se dá a partir de uma série de elementos – o indivíduo, o coletivo e a realidade objetiva – sendo que não há distinção prévia entra qual dos três elementos seria mais importante nem uma observação livre de suposições. Os coletivos de pensamento são o que permitem emergir a produção de um determinado fato científico – coletivos entendido aqui como uma comunidade que desenvolve uma mentalidade própria de comunicar, agir e pensar.

Quando apareceu, a obra de Fleck parecia ter todas as qualidades para ser exitosa; entretanto, teve pouca repercussão. Uma série de situações, da consolidação do Nazismo na Alemanha à somente uma resenha da obra ter sido veiculada em uma revista acadêmica de filosofia e técnica, fizeram com que a obra do médico judeu não circulasse pela Europa. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a ocupação nazista de Lviv, Fleck seria levado aos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald, onde trabalharia forçado nos laboratórios nazistas. Ao fim da guerra, em 1946, junto de sua esposa e filho voltaria a sua Lviv natal. Trabalharia como médico, professor e membro de associações científicas de seu país, tendo por foco não mais a epistemologia da ciência mas o atendimento clínico e os estudos de microbiologia. Morreria em 1961, em Israel.

No ano seguinte a sua morte, em 1962, o alemão Thomas S. Kuhn publicaria aquele que seria o livro mais lembrado de sua obra: “A Estrutura das Revoluções Científicas“. No prólogo, Kuhn cita o livro de Fleck, de passagem, como “uma monografia quase desconhecida de Ludwik Fleck (…), um ensaio que antecipa muitas de minhas próprias ideias” (KUHN, 2006, p.11). Publicado em inglês, por uma grande editora, Kuhn chamaria atenção para o livro de Fleck, que 17 anos depois seria traduzido para o inglês e publicado pela University of Chicago Press, nos Estados Unidos, com prefácio do alemão. Era o início de uma redescoberta da obra, que na sequência do inglês teria suas traduções para o italiano (1983), espanhol (1986) e francês (2005), antes da brasileira, em 2010. Segundo Curi e Santos (2011), só recentemente começam a ser exploradas outras possibilidades do livro de Fleck para além das noções de estilo de pensamento e coletivo de pensamento, consideradas precursoras e semelhantes as de epistémè de Michel Foucault e de paradigma de Kuhn.

No prefácio à edição em francês de “Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico”, Latour critica aqueles que consideram a noção de coletivo de pensamento de Fleck como precursoras de Foucault e Kuhn, dizendo que Fleck “não tratava apenas de estudar o contexto social das ciências, mas de perseguir todas as relações, embates e alianças envolvidas na produção do conhecimento e da história do pensamento” (CURI & SANTOS, 2011). Latour ainda dedicaria um de seus vários boxes de “Reagregando o Social” a Fleck, o que me faz ainda mais crer que muito de seu pensamento enquanto TAR, sua noção do social enquanto movimento – ação – transformação, está em Fleck.

Se quiser dar uma olhada no livro e conferir por si o quanto esta influência existe (ou não), aqui vai a edição em espanhol.

capa piaui tropicalia

Estes dias estava lendo a Revista Piauí 117, de junho de 2016, que comprei pela soberba capa (acima) com a cúpula golpista no Brasil retratada como no clássico disco “Tropicália” – aliás, algo que não fazia há anos, comprar revista pela capa. Uma das reportagens da edição é a “Conspiração Amarga“, escrita por Ian Leslie para o Guardian e traduzida para o ptbr por Sergio Tellaroli, um relato amplo sobre a construção da ideia de que a gordura é a grande vilã da alimentação, quando se sabe hoje que o açúcar sempre teve papel mais nocivo ao corpo humano do que a gordura. O texto narra como certos cientistas dos EUA e institutos científicos ligados ao governo de lá tiveram papel considerável na popularização da ideia de que a gordura deveria ser reduzida drasticamente da alimentação cotidiana do cidadão estadunidense, tudo isso a partir de pesquisas com amostras bem questionáveis. E não é que, lá pelo meio da matéria, quando Leslie fala dos meandros internos da construção de verdades nos “coletivos de pensamento” na ciência da nutrição, ele cita Fleck? Foi uma coincidência curiosa ler Fleck em uma revista como Piauí no mesmo momento em que lia seu livro “Gênese e Desenvolvimento”. Zeitgeist.

Imagem de Fleck daqui.