diário da tese (4): jornalismo e/ou ação?

 

ninja

O semanário da tese falhou nas últimas semanas, mas nesta cá estamos, com um texto menorzinho, com um dos temas que desde a qualificação (ou até antes dela) tem me perseguido na pesquisa: a relação entre jornalismo e/ou ativismo.

Uma das perguntas que Fábio Malini fez na banca ainda ressoa por aqui: quão ativista deve ser o jornalista? ou, do contrário: quão jornalista deve ser o ativista? Pelo entendimento de mediação da TAR que resgatei no post passado, refaço a pergunta: quão ativista consegue não ser o jornalista? Na mediação, qualquer que seja, não existe neutralidade, e sim a influência de uns mais do que outros na rede de mediações envolvidas. Sabe-se que no jornalismo, a ideia de ser objetivo, de buscar fazer um relato mais próximo possível à dita realidade é, a grosso modo, um procedimento: nunca vai se conseguir ser completamente objetivo, mas é possível ser mais ou menos objetivo de acordo com os procedimentos adotados. O jornalismo moderno do século XIX pra cá adota esse lema como regra de ouro de seus manuais. Mas as redes modificam esse cenário ao mostrarem, de modo mais rápido e fácil, os múltiplos pontos de vista possíveis de um dado acontecimento, deixando mais evidente o que antes era velado: que o relato jornalístico fruto desses procedimentos objetivos pode estar muito mais longe da realidade que se quer mostrar do que a instituição “jornalismo” faz crer.

Assim, o “lado” em que aquele relato foi produzido é mais escancarado do que antes, e muitas vezes mais do que a instituição jornalística tradicional gostaria.  Se esse lado é a manutenção de um status quo que vai contra direitos humanos fundamentais (como o caso, por exemplo, do PL do Aborto do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que dificulta o acesso ao aborto legal para vítimas de violência sexual), como não se posicionar? Como fazer uma matéria e usar de procedimentos para atingir uma objetividade sabendo que estes procedimentos podem (supostamente) equilibrar lados tão desequilibrados historicamente e na realidade brasileira atual como o direito das mulheres sobre seu corpo?

Esse é um dos dilemas do jornalismo hoje, que é traduzido de forma rápida na frase “a transparência é a nova objetividade“. Numa situação como a citada acima, alguns jornalistas, professores e pesquisadores da área estão a trabalhar com a ideia de que a transparência – assumir uma posição, um lugar de fala – pode substituir a objetividade na cultura jornalística como procedimento (ou ritual estratégico, segundo Gaye Tuchman) para relatar determinado acontecimento. A transparência de adotar determinada posição em detrimento de outras é uma das marcas de certo midiativismo, o que embaralha mais a questão discutida no post anterior sobre “quando se é jornalismo” e “quando se é ativismo”. É possível separá-los?

Estou resumindo aqui uma questão que é muito mais complexa só para vocês perceberem o tamanho que é essa discussão. Sigo, nesse momento, por dois caminhos apontado pela banca de qualificação: a relação do jornalismo-ativismo, de um lado, e de outro a antropologia. Ao me aprofundar na Teoria Ator-Rede, me aproximei da área de onde ela nasceu, a antropologia e a sociologia da ciência, e tenho ido mais na origem de algumas concepções antropológicas para esmiuçar tanto a ideia de mediação proposta por Latour e cia quanto a noção de agência não humana.

Não por caso, dois artigos que estava trabalhando (e que me fizeram não postar aqui nas últimas semanas) são, justamente, para dois congressos nessas duas áreas: O II Congresso Internacional de net-ativismo, entre 16 e 19 de novembro em São Paulo, e a XI Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), entre 30 de novembro e 5 de dezembro, em Montevideo. Espero com eles conseguir entender e esmiuçar melhor algumas questões, que trago pra cá depois que terminar estes eventos.

 

(foto Mídia NINJA/Brasil de Fato)

diário da tese (3): a questão da mediação

mediacao traducao

Como prometido, o diário-semanário da tese traz hoje algumas questões discutidas na qualificação do projeto de tese, intitulado até então de “A Mediação no jornalismo feito por não jornalistas: um estudo das agências humanas e não humanas na Mídia NINJA“. Digo até então porque título é das partes que mais se mexe num trabalho acadêmico, e este será mudado por, entre outros fatores, trazer uma questão importante apontada pela banca: será que as pessoas que trabalham na Mídia NINJA não são jornalistas mesmo? No sentido de não serem formados numa faculdade de jornalismo está claro que não são, mas jornalista só é aquele que tem um diploma de universidade?

É uma questão que rende muitas discussões na academia, no mercado profissional e nos tribunais – atualmente, não é obrigatório o diploma para ser jornalista, mas o assunto está sendo discutido novamente na Câmara dos Deputados. Do ponto de vista do trabalho analisado em questão, não, jornalista não é só aquele que é formado em jornalismo, porque a concepção que defendo nos referenciais teóricos é de que o jornalismo é, acontece, a partir de determinadas circunstâncias de mediação dadas na ação, e não por questões estabelecidas a priori, como formação ou registro profissional.

É uma visão influenciada pela concepção de mediação trabalhada pela Teoria Ator-Rede (TAR), em especial por Bruno Latour, e por alguns trabalhos que aproximam a TAR ao jornalismo, como um artigo de 2015 de Alex Primo e Gabriela Zago. Esta concepção vê a mediação sempre como movimento, ação, tradução, um processo híbrido, instável e constituído de diversos elementos estabelecidos em uma rede de significados (como diz Latour em On Technical Mediation, texto de 1994 chave para entender essa visão).

Dois pontos são importantes: o primeiro é assumir que, como toda tradução, há sempre um grau de interferência destes elementos na rede de significados constituída. Não existe um mediador “puro”, que não vai interferir na ação e vai traduzi-la tal qual ela é. Pode parecer uma questão óbvia, ainda mais para quem trabalha com tradução de textos de uma língua para outra, mas basta olhar os jornais de grande circulação no Brasil, como Folha de S. Paulo, O Globo e Zero Hora, no papel ou em suas versões digitais, para perceber que a visão predominante no jornalismo ainda é a de que o jornalista relata “a verdade” de forma transparente, o que pressupõe que não existe intereferência. Admitir que existe construção no processo de tradução que ocorre na mediação só deveria ser um problema se ainda considerássemos as notícias e a realidade a mesma coisa, visão que desde Walter Lippmann em seu clássico “A Opinião Pública“, lá em 1922, já se criticava: “a hipótese que me parece mais fértil é que as notícias e a verdade não são a mesma coisa e precisam ser claramente distinguidas”.

O segundo ponto é um dos mais polêmicos: se devemos entender a mediação como tradução em que todos os atores envolvidos podem interferir na ação, então os objetos técnicos também devem ser incluídos aí – e se vamos estudar as mediações, precisamos estudar estes objetos. No caso do jornalismo, as discussões sobre se robôs podem ou não fazer uma notícia, o jogo de mostra-esconde do algoritmo do Facebook, softwares utilizados no jornalismo de dados, por exemplo, são questões em que a ação dos objetos técnicos está bastante saliente, mas mesmo outras em que, a princípio, essa ação não é tão visível – como o publicador de notícias de um jornal online, os blocos de anotação usados pelos jornalistas ou o uso do telefone para uma entrevista – também podem ser melhor compreendidas à luz dessa ideia de mediação como tradução trazida pela TAR.

Para não alongar muito essa discussão que é intensa, densa e tem rendido livros e mais livros, volto ao título do trabalho: “A Mediação no jornalismo feito por não jornalistas: um estudo das agências humanas e não humanas na Mídia NINJA”. Será que posso fazer essa distinção já no título entre jornalistas e não jornalistas na hora de trabalhar a mediação? Se considerar que o jornalismo pode ser feito por um profissional denominado jornalista, estou, de um lado, também trabalhando com um a priori, o de que certos humanos – jornalistas – são mediadores privilegiados, e só cabe a eles fazerem jornalismo. Seria uma contradição com a ideia de que a mediação é uma tradução, um movimento, e de que os papéis assumidos na mediação são relativos, que só podem ser definidos quando analisados no curso da ação.

De outro lado, afirmar que o jornalista é um mediador privilegiado e que só ele pode fazer o que se convencionou chamar de jornalismo é trazer a questão para o jornalismo enquanto profissão, institucionalizada desde o final do século XIX, período de florescimento do ideal moderno que, justamente, tinha como fato o de que… a realidade poderia ser mostrada tal qual ela é a partir da ideia da objetividade. Algo que, sabemos hoje, não pode. Se vai ser possível/viável ou produtivo conciliar estas duas questões num único trabalho acadêmico é algo que ainda não sei…

(Imagem que abre o post é uma ilustração do artigo On Technical Mediation, de Bruno Latour, 1994)