Diário da tese (11): Depois do método

mess

Em 1974, o austríaco Paul Feyerabend estava cansado: era professor convidado na Universidade de Sussex, em Brighton, na Inglaterra, trabalhando 12 horas por semana e não dava mais conta de ensinar. Tendo lutado no Exército Nazista alemão da Segunda Guerra Mundial (atingido por uma bala, viveria desde então de muletas), estudado com Karl Popper em Londres e estado professor de filosofia na Universidade de Berkeley, na Califórnia, Feyerabend havia trabalhado nos últimos anos em um texto junto de seu amigo Imre Lakatos, matemático e professor na London School of Economics, sobre “anarquismo metodológico”. O livro consistiria de duas partes: a primeira, a cargo do austríaco, traria uma crítica a posição racionalista na ciência: Lakatos, por sua vez, reformularia essa posição para defendê-la e rebater os argumentos de Feyerabend. Juntas, as duas partes deviam retratar os longos debates dos dois em torno desse tema — que tiveram início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefônicas, artigos, e só tiveram fim com a morte repentina de Lakatos, em 2 de fevereiro de 1974.

Como homenagem ao colega, Paul Feyerabend resolveu publicar o livro assim mesmo, só com uma parte, e assim nasceu Contra o Método (1975), um manifesto contra o método científico racionalista que recorre a psicologia, sociologia e história da ciência para se perguntar: será que é desejável apoiarmos uma tradição que se mantém una e intacta, através de regras restritas, e ainda concedê-la direitos excusivos sobre a manipulação do conhecimento sobre as demais? A resposta dele é taxativa: “um firme e vibrante NÃO” (p.24).

30 anos depois, John Law, um dos pesquisadores mais diretamente ligado à TAR, escreve um livro inteiro que, embora não aborde diretamente as referências do austríaco, tem um mesmo objetivo: discutir o método científico da tradição Euro-Americana. O argumento central de After Method: mess in social science research traz a ideia de que os modos de inquirir acadêmicos não captam as texturas confusas do mundo tal como elas se apresentam. Partes do mundo são capturados nas etnografias, histórias e estatísticas, mas outras partes não. Ele então se pergunta: “If much of the world is vague, diffuse or unspecific, slippery, emotional, ephemeral, elusive or indistinct, changes like a kaleidoscope, or doesn’t really have much of a pattern at all, then where does this leave social science? How might we catch some of the realities we are currently missing? Can we know them well? Should we know them? Is ‘knowing’ the metaphor that we need? And if it isn’t, then how might we relate to them?” (p.2)

Law não tem uma única resposta para estas questões, mas uma certeza: se queremos pensar sobre a bagunça (mess) da realidade, então nós vamos ter de nos ensinar a pensar, praticar, relatar e conhecer de novas maneiras, não apenas do jeito que nos ensinaram nas aulas de metodologia. After Method é, então, um livro que sustenta um modo de pensar sobre o método que é mais amplo, solto e devagar, que afirma que os métodos, suas regras e práticas metodológicas não apenas descrevem a realidade como também ajudam a produzir a realidade que estão compreendendo (p.5). O método – como a tecnologia, os objetos – jamais é inocente ou somente técnico, e, diferente do que a tradição metafísica racionalista Euro-Americana de estudos científicos ensina, ele não é apenas um meio para o fim de conhecer melhor algo.

Para descrever sua proposta, Law traz diversos estudos e situações na história da ciência e tecnologia. No capítulo dois, ele vai ao livro de Bruno Latour e Steve Woolgar, A vida no Laboratório: a produção dos fatos científicos, publicado em 1979, e ver, “sob os ombros dos etnógrafos da ciência”, como cientistas e outros produzem conhecimento na prática. Com Latour e Woolgar, Law introduz sua não-proposta de método a partir da ideia de assemblage, oriunda da filosofia de Giles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs (1980): “a process of bundling, of assembling, or better of recursive self-assembling in which the elements put together are not fixed in shape, do not belong to a larger pre-given list but are constructed at least in part as they are entangled together” (LAW, 2004, p.42). A ideia de assemblage recusa fórmulas fixas que definam a priori o que é bom ou ruim como método e determina que este ocorra como um processo contínuo de elaborar e performar (enact) os limites necessários entre presença, ausência e alteridade.

O método assemblage também pode ser entendido como ressonância que cria e detecta periodicidades e padrões no fluxo das coisas (p.143). Mas que padrões e periodicidades ele estabelece e quais nega? Com a perspectiva de não trazer respostas generalistas e nem partir de relações assimétricas em sua busca, o método assemblage pode percorrer os desvios e a indecisão das múltiplas realidades e delas captar questões que mantém estabilidades temporárias que podem ajudar a performar outras estabilizações temporárias, e assim indefinidamente. Se, como diz Law, a metafísica Euro-Americana se compromete com a estabilidade e a precisão de suas investigações, mesmo que ao custo de posições tomadas a priori do observador e da aparente universalidade de suas afirmações, esta metafísica alternativa proposta por Law em After Method quer incluir a inconstância de modos alegóricos, ambíguos, pouco tácitos, na hora de construir métodos heterogêneos que performem uma dada realidade mais do que a tentem representar.

Law encerra o livro sugerindo que as afirmações metafísicas que o método científico tradicional Euro-Americano propõe devem ser erodidas. Mas de que forma prática fazer isso? Quais os métodos alternativos que são lentos, incertos, que dediquem atenção ao processo e consigam capturar as múltiplas realidades performadas de maneira mais heterogênea? A resposta, é claro, é que não há uma única resposta – nem deve haver (p.151). Mas a capacidade de colocar as questões é tão importante como quaisquer respostas particulares que possam ser obtidas – no que Feyerabend, com sua radical e ainda atual provocação ao método trinta anos antes, talvez concordaria.

Baixe:

LAW, John. After Method: mess in social science research. New York: Routledge, 2004.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Tradução de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1977.

P.s1: After Law é um caminho sem volta de leitura, e como tal estará na tese que, nesse momento, anda lenta no segundo capítulo. A imagem de abertura é da introdução do livro, p.1.
Ps2: Agradeço a Fundação Ecarta e ao Léo Felipe pela aleatoriedade de cruzar meu caminho, na semana passada, com o catálogo da exposição “Um firme e Vibrante NÃO“, de 2015, onde Leo cita Feyerabend – e por conta disso é que surgiu a ideia de ligar Law e Feyerabend.

Diário da tese (8): Iniciando a TAR

ant latour

Já falei por aqui que a perspectiva teórica/metodológica que utilizo na tese é fortemente baseada na antropologia, em especial no grupo de autores que se costumou chamar de Teoria Ator-Rede – em inglês, Actor-Network Theory, ANT, que não por acaso sugere o trocadilho com Formiga (“Ant” em inglês). Originada nos estudos da Ciência e Tecnologia (em inglês, STS), a Teoria Ator-Rede surge no início dos anos 1980, no contexto de alternativas às concepções estruturalistas e funcionais da ciência; estas oferecem ora explicações sociais, baseadas em relações de causa e efeito ocasionadas pelo social isolado do “fenômeno” a ser analisado, ora essencialistas, centradas no fenômeno a ser analisado, sem considerar as suas relações sociais, econômicas, culturais, etc. Em oposição a isso, pesquisadores como Bruno Latour, Michel Callon, John Law, Madeleine Akrich e Annemarie Mol, entre outros, começaram a defender a ideia de que as inovações científicas e técnicas não poderiam ser pensadas de forma separada do contexto em que se inserem e dos atores envolvidos em sua produção. Assim, propõem uma “sociologia da mobilidade” (um dos muitos nomes já usados antes de TAR), que não considera nada do que quer explicar como algo dado a priori, e onde a explicação para os fenômenos sociais passa a se dar no fluxo, na circulação em rede entre os atores envolvidos, sejam eles humanos ou não-humanos.

Quando a TAR propõe uma análise da circulação de todos os atores envolvidos, passa também a considerar aqueles atores não-humanos no processo. A partir da observação antropológica de redes que constituem, por exemplo, descobertas científicas, estas pesquisas passal a valorizar também o papel das materialidades na produção de uma ação: a produção de um conhecimento científico não pode ser entendida sem os objetos técnicos que participam do processo. Como explica Michel Callon nesta entrevista de 2008, a ideia de dar a mesma importância a ambos vem em oposição “a uma distinção constringente, historicamente marcada e que corresponde ao modernismo, quero dizer, à convicção, segundo a qual há duas categorias de entidades no cosmos, a saber: os humanos e os outros”.

No Brasil, esta perspectiva é conhecida sobretudo pela obra de Bruno Latour, filósofo francês que já veio diversas vezes pra cá e que tem muitos livros traduzidos para o português, com destaque para “Ciência em Ação“, (Unesp/2000), “Jamais Fomos Modernos” (Editora 34/1994) e “Reagregando o Social” (Edusc/Edufba 2012). Por sinal, alguns livros infelizmente mal traduzidos, o que faz com que muita gente – entre eles o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, interlocutor comum de Latour – não recomende as edições em português lançadas aqui pela Edusc, de Bauru, como a de “Reagregando”, feita em parceria com a Editora da UFBA. Li alguns textos de Latour em espanhol e inglês e me pareceu que, para quem quer se debruçar, vale o esforço de ler uma obra tão densa, confusamente escrita (como é o estilo do francês, prolixo e confuso), em outro idioma que não o português.

Apesar da popularidade de Latour, o fato é que há muita TAR pra além dele. Estou terminando um capítulo que apresenta alguns conceitos atores-rede básicos, e que usarei pra minha tese, como simetria, tradução e mediação, e estou vendo que John Law, Michel Callon e Annemarie Mol, por exemplo, tem estudos excelentes trabalhando com a perspectiva da TAR com objetos tão distintos quanto, respectivamente, as navegações portuguesas do século XVI, a queda do crescimento da população do molusco conhecido como Vieira na França e as diferentes formas que uma doença como a anemia podem ser “performadas” nos diferentes atores que fazem parte de sua rede (médicos, pacientes, enfermeiros). Nesse site, mantido por Law, há uma base de textos (em inglês) do que se identifica como Actor-Network Theory, boa parte com comentários rápidos que guiam o leitor para o que trata cada um; nesta outra página a bibliografia está dividida por tópicos. Deixo aqui em PDF três dos textos iniciais, considerados basilares da área, escrito nos anos 1980 e ainda importantes para entrar no cansativo (mas prazeroso) caminho da TAR.

_ Callon, Michel and Latour, Bruno (1981). Unscrewing the Big Leviathan: how actors macrostructure reality and how sociologists help them to do so. In K. D. Knorr-Cetina and A. V. Cicourel (Eds.) Advances in Social Theory and Methodology: Toward an Integration of Micro- and Macro-Sociologies. Boston, Mass, Routledge and Kegan Paul: 277-303.

_ Callon, Michel. (1986). Some Elements of a Sociology of Translation: Domestication of the Scallops and the Fishermen of Saint Brieuc Bay. In J. Law (Ed.) Power, Action and Belief: a new Sociology of Knowledge? Sociological Review Monograph. London, Routledge and Kegan Paul. 32: 196-233.

_ Law, J. (1986). On the Methods of Long Distance Control: Vessels, Navigation and the Portuguese Route to India. In J. Law (Ed.) Power, Action and Belief: a new Sociology of Knowledge? Sociological Review Monograph. London, Routledge and Kegan Paul. 32: 234-263.

Crédito imagem: “Reagregando o Social”, 2012.