diário da tese (3): a questão da mediação

mediacao traducao

Como prometido, o diário-semanário da tese traz hoje algumas questões discutidas na qualificação do projeto de tese, intitulado até então de “A Mediação no jornalismo feito por não jornalistas: um estudo das agências humanas e não humanas na Mídia NINJA“. Digo até então porque título é das partes que mais se mexe num trabalho acadêmico, e este será mudado por, entre outros fatores, trazer uma questão importante apontada pela banca: será que as pessoas que trabalham na Mídia NINJA não são jornalistas mesmo? No sentido de não serem formados numa faculdade de jornalismo está claro que não são, mas jornalista só é aquele que tem um diploma de universidade?

É uma questão que rende muitas discussões na academia, no mercado profissional e nos tribunais – atualmente, não é obrigatório o diploma para ser jornalista, mas o assunto está sendo discutido novamente na Câmara dos Deputados. Do ponto de vista do trabalho analisado em questão, não, jornalista não é só aquele que é formado em jornalismo, porque a concepção que defendo nos referenciais teóricos é de que o jornalismo é, acontece, a partir de determinadas circunstâncias de mediação dadas na ação, e não por questões estabelecidas a priori, como formação ou registro profissional.

É uma visão influenciada pela concepção de mediação trabalhada pela Teoria Ator-Rede (TAR), em especial por Bruno Latour, e por alguns trabalhos que aproximam a TAR ao jornalismo, como um artigo de 2015 de Alex Primo e Gabriela Zago. Esta concepção vê a mediação sempre como movimento, ação, tradução, um processo híbrido, instável e constituído de diversos elementos estabelecidos em uma rede de significados (como diz Latour em On Technical Mediation, texto de 1994 chave para entender essa visão).

Dois pontos são importantes: o primeiro é assumir que, como toda tradução, há sempre um grau de interferência destes elementos na rede de significados constituída. Não existe um mediador “puro”, que não vai interferir na ação e vai traduzi-la tal qual ela é. Pode parecer uma questão óbvia, ainda mais para quem trabalha com tradução de textos de uma língua para outra, mas basta olhar os jornais de grande circulação no Brasil, como Folha de S. Paulo, O Globo e Zero Hora, no papel ou em suas versões digitais, para perceber que a visão predominante no jornalismo ainda é a de que o jornalista relata “a verdade” de forma transparente, o que pressupõe que não existe intereferência. Admitir que existe construção no processo de tradução que ocorre na mediação só deveria ser um problema se ainda considerássemos as notícias e a realidade a mesma coisa, visão que desde Walter Lippmann em seu clássico “A Opinião Pública“, lá em 1922, já se criticava: “a hipótese que me parece mais fértil é que as notícias e a verdade não são a mesma coisa e precisam ser claramente distinguidas”.

O segundo ponto é um dos mais polêmicos: se devemos entender a mediação como tradução em que todos os atores envolvidos podem interferir na ação, então os objetos técnicos também devem ser incluídos aí – e se vamos estudar as mediações, precisamos estudar estes objetos. No caso do jornalismo, as discussões sobre se robôs podem ou não fazer uma notícia, o jogo de mostra-esconde do algoritmo do Facebook, softwares utilizados no jornalismo de dados, por exemplo, são questões em que a ação dos objetos técnicos está bastante saliente, mas mesmo outras em que, a princípio, essa ação não é tão visível – como o publicador de notícias de um jornal online, os blocos de anotação usados pelos jornalistas ou o uso do telefone para uma entrevista – também podem ser melhor compreendidas à luz dessa ideia de mediação como tradução trazida pela TAR.

Para não alongar muito essa discussão que é intensa, densa e tem rendido livros e mais livros, volto ao título do trabalho: “A Mediação no jornalismo feito por não jornalistas: um estudo das agências humanas e não humanas na Mídia NINJA”. Será que posso fazer essa distinção já no título entre jornalistas e não jornalistas na hora de trabalhar a mediação? Se considerar que o jornalismo pode ser feito por um profissional denominado jornalista, estou, de um lado, também trabalhando com um a priori, o de que certos humanos – jornalistas – são mediadores privilegiados, e só cabe a eles fazerem jornalismo. Seria uma contradição com a ideia de que a mediação é uma tradução, um movimento, e de que os papéis assumidos na mediação são relativos, que só podem ser definidos quando analisados no curso da ação.

De outro lado, afirmar que o jornalista é um mediador privilegiado e que só ele pode fazer o que se convencionou chamar de jornalismo é trazer a questão para o jornalismo enquanto profissão, institucionalizada desde o final do século XIX, período de florescimento do ideal moderno que, justamente, tinha como fato o de que… a realidade poderia ser mostrada tal qual ela é a partir da ideia da objetividade. Algo que, sabemos hoje, não pode. Se vai ser possível/viável ou produtivo conciliar estas duas questões num único trabalho acadêmico é algo que ainda não sei…

(Imagem que abre o post é uma ilustração do artigo On Technical Mediation, de Bruno Latour, 1994)

Diário da tese (2): a técnica da qualificação

jittsi

A defesa do projeto de tese no processo que se chama “qualificação” na academia ocorreu semana passada, e foi tudo bem. A banca trouxe excelentes contribuições para melhorar (e reformular) algumas questões do projeto. Deixou mais claro alguns caminhos em vez de outros. Promoveu debate sobre questões que até então pouco tinham sido conversadas cara a cara. E com isso, trouxe um pouco de segurança para se tocar os próximos passos. Dito isso, vamos aos detalhes.

Cheguei cerca de 1h antes da banca para testar os equipamentos, já que não ia usar os que se costuma usar naquela sala. Explico: a mim não faz sentido estudar objetos técnicos e a mediação e fazer uma chamada voz sobre IP em um software “caixa-preta” que seu código só é conhecido pela sua empresa, como é o caso do Skype e da empresa que o desenvolve, a Microsoft. Se boa parte dos intuitos da pesquisa com que, por exemplo, a Teoria Ator-Rede (TAR) trabalha, é o de abrir as caixas pretas e ver o social em formação, em fluxo (e rede), então a escolha dos objetos a fazer parte da videoconferência também deve buscar essa abertura. Pelo menos é o que acredito, e conta aí também alguns anos de defesa e uso do software livre, movimento que justamente defende a abertura dos códigos como questão primordial de liberdade, segurança, acesso ao conhecimento e, principalmente, autonomia. Fiz um artigo de uma disciplina do doutorado, inclusive, propondo essa aproximação da TAR com a filosofia do software livre, que ainda vou revisar e publicar em algum lugar – ou de repente trago aqui mesmo do jeito que está.

As opções que tinha levantado era o Mconf, programa bem completo de videoconferência produzido por um grupo da própria UFRGS, e o Meet.jit.si, muito utilizado pelo pessoal do software livre. Já havia testado ambos e gostado mais do segundo, embora o primeiro seja interessante também e um ambiente bastante completo para grupo de estudos e videoaulas. Na sala destinada a banca, ligo o computador e detecto uma primeira questão: assim como todos os outros que já tive acesso na UFRGS, o computador tem como sistema operacional Windows, da mesma Microsoft. Meu lado ativista/pesquisador apita: por que uma universidade pública usa em seus computadores um sistema operacional que custa alguns milhares de reais por ano em licenças tendo a opção de, com esse mesmo dinheiro de licenças, bancar um grupo de desenvolvimento e customização de alguma distribuição livre baseada em GNU/Linux específica pra universidade?

Encontro duas razões principais: o fato das pessoas estarem “acostumadas” a usar mais o Windows, já que ele foi colocado na cotidiano de muita gente desde muito cedo; e, o lobby político e financeiro da Microsoft, que explica a primeira também. Ambas razões, a meu ver, deveriam ser questionadas por universidades públicas que sempre dizem ter como princípios o livre acesso ao conhecimento: quão livre é esse conhecimento se não temos acesso aos códigos que são construídos os softwares de um computador que usamos? Não seriam estes softwares também conhecimento que devemos ter livre acesso? Ou o entendimento geral é de que os computadores e seus códigos seriam apenas “ferramentas”, meios que não interferem nos fins a que são destinados? Sob esta perspectiva política (e econômica) é que pode se compreender o uso do Windows na universidade: “vamos pagar a Microsoft para fornecer um produto fechado e não pensar mais nisso” é melhor que “que tal desenvolvermos nossa própria distribuição livre customizada e assim abrir as ‘caixas-pretas’ dos nossos computadores e sabermos minimamente o que tem ali?”. Como se percebe, este ponto de vista da neutralidade da técnica, criticada pelos pesquisadores da TAR e por tantos outros filósofos (Heidegger entre eles) e pensadores, ainda predomina (e muito!) no nosso senso comum.

Com Windows a contragosto, surge o segundo problema: não há o navegador Chrome instalado, de modo que tenho de baixá-lo e instalar, já que o “jitsi”, por enquanto, só funciona em Chrome (e sua variante livre, o Chromium). Vou falar com o pessoal da “técnica” – assim são chamados o pessoal do “Setor de Informática” – pra ver a possibilidade de baixar o Chrome, já que tinha ouvido falar que certos computadores da universidade não tem permissão pra instalar softwares. Eles me dizem que é possível sim, mas que no próximo início do computador o Chrome vai estar apagado; afirmam que esse é o funcionamento de praxe para evitar a instalação de programas desnecessários pelos alunos; questão de segurança. Digo do meu desejo de usar um outro sistema de videoconferência para a banca: eles respondem que possivelmente não vai funcionar, porque o CPD (Centro de Processamento de Dados) pode barrar os pacotes de dados em outros softwares que não os testados na máquina. Precisaria ter avisado com antecedência para eles testarem, é o que me falam.

Não quis mais discutir e voltei pra sala da qualificação. Instalamos a webcam, testamos o áudio. Entrei no Skype e loguei com minha conta – que nem lembrava mais, faz pelo menos uns três anos que não usava ele. Mas também baixei o Chorme e fiz uns testes com o Jitsi: funcionou bem, ouvi claramente o professor da banca (Fábio Malini) e ele me ouvia. A imagem oscilava, mas mais por conta da conexão (cabeada, rede da universidade) do que por outro motivo. Testei a opção do jitsi em compartilhar a tela com o outro participante, de modo a poder mostrar a tela da apresentação da quali, mas deu “tilt”: travou o som de retorno do Malini e ele não nos ouvia mais. Como já havia passados 5 minutos do horário de início, desativei essa função e regulei a webcam para mostrar a tela do projetor que estava sendo passada a apresentação. Gambiarra que deu certo e assim começamos a banca, com minha apresentação, seguido da fala de Malini, a de Alex Primo e minhas respostas. Como já disse na abertura do texto, foi uma ótima banca (pelo menos pra mim) e trouxe muitas contribuições pro andamento da pesquisa.

Na semana que vem falo mais desses encaminhamentos; aqui está o PDF da apresentação utilizada.